Os misteriosos espiões nada espiavam, só se americanizavam

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Cinco dos dez acusados compareceram ontem perante um juiz federal DR

Cinco dos dez alegados membros de uma rede espionagem russa, detidos no domingo, compareceram ontem perante um juiz federal em Nova Iorque, que ordenou a sua detenção preventiva.

Um 11.º suspeito foi detido em Chipre. Moscovo diz tratar-se de uma acusação "sem fundamento" e questiona o momento e os objectivos da operação, logo a seguir à visita do Presidente Dmitri Medvedev aos Estados Unidos. O caso combina todos os ingredientes das estórias de espionagem com um mistério: os acusados pouco ou nada espiaram em mais de dez anos de actividade.

A rede estaria a ser vigiada pelo FBI desde então. O objectivo dos elementos da rede, diz a agência, era integrarem-se na sociedade, tornando-se "suficientemente americanizados" para poderem recolher informações, recrutar fontes e infiltrar-se nos meios dirigentes americanos ou junto de jornalistas e think-tanks.

Os detidos não foram ainda acusados de espionagem mas de "conspiração", por serem agentes clandestinos de um governo estrangeiro e por "lavagem" de dinheiro. Não terão tentado obter informações secretas.

A crer no FBI, nada espiaram. Observam especialistas da espionagem que a criação da rede poderia ser um objectivo em si mesmo: a infiltração de agentes "ilegais", isto é, com identidade falsa e sem cobertura diplomática, nos países ocidentais.

Os acusados, que se apresentavam como americanos, canadianos, peruanos ou britânicos, teriam sido treinados pela espionagem russa, o Serviço de Informação Externa (SVR), recebendo uma identidade falsa e uma "lenda" pessoal. " Com uma excepção, viviam na América desde os anos 90, nos subúrbios da classe média, em Boston, Seattle, New Jersey ou Nova Iorque. Altamente qualificados, alguns trabalhavam como consultores de grandes empresas.

A missão

Uma mensagem dos chefes do "Centro" de Moscovo, alega o FBI, resume a sua missão: "Sois enviados para os EUA para uma missão de serviço de longa duração. (...) A vossa educação, contas bancárias, carro, casa, etc., visam um único fim, cumprir a missão, isto é, procurar e desenvolver laços nos círculos de decisão política e enviar intels [relatórios de informação] ao C[entro]."

Os alegados agentes pouco ou nada terão feito além de criar as suas novas identidades e executar uma rotina de contactos. Viajavam para Moscovo, via Roma. Trocavam computadores portáteis e sacos de dinheiro - na rua, em parques públicos ou escadas do metro. Tanto usavam a clássica tinta invisível como codificavam mensagens por métodos sofisticados, que enviavam para o "Centro" por redes privadas de comunicação, via computador. O FBI precisa detalhadamente os métodos, não os conteúdos.

Os agentes do FBI não só os seguiam como também conversavam com eles, sob o disfarce de agentes russos. O SVR queria, por exemplo, informação sobre a política americana para a Ásia Central ou o Irão, sobre a avaliação ocidental da política russa ou sobre o uso da Internet por terroristas.

Anota o FBI que o "Centro" ordenou a um dos acusados, Cyntia Murphy, "que tentasse obter um emprego que lhe permitisse contactar fontes próximas da Administração americana (...) mas o grupo de "conspiradores de New Jersey" respondeu que Murphy temia que lhe pedissem demasiados detalhes sobre o seu percurso profissional".

Efeitos políticos?

Oleg Gordievsky, antigo coronel e desertor do KGB, diz à Reuters que, "em Moscovo, eles estão furiosos" por verem desmantelada uma rede de "ilegais" desta dimensão.

A explicação possível da iniciativa seria dispor de uma rede "adormecida", sonho de muitas secretas. Ou talvez um mero desperdício: os espiões poderiam informar Moscovo lendo os jornais ou pesquisando na Internet.

A incógnita seguinte é a dos efeitos políticos. O MNE russo, Serguei Lavrov, ironizou: "O momento em que fizeram isto foi escolhido com certa elegância." Ou seja, dias depois de Obama e Medvedev se fazerem filmar a comer hambúrgueres. A Casa Branca admitiu ontem que Obama estava já então a par do caso.

Comenta Paul Reynolds, da BBC: "Diplomaticamente, é desastroso. Mostra uma desconfiança a longo prazo por parte dos russos. (...) Deixa um gosto amargo na boca de Obama." Mas o Departamento de Estado garante que se trata de um "vestígio" do passado que não porá em causa a melhoria das relações bilaterais.

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