Janelle Monae é tão pequena e já tão grande

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Apadrinhada por Puff Daddy; Big Boi (OutKast) e Erykah Badu

Uma máquina de cantar e dançar, com cabelo de Grace Jones, pés de James Brown, inspirada pelos OutKast, Prince ou Fritz Lang. Vamos ouvir falar muito dela

A América preparava-se para dormir, ou pelo menos 3 milhões de americanos preparavam-se para dormir, quando aquilo aconteceu. Foi a 19 de Maio, parte do país assistia, sonolento, a um dos seus programas de TV favoritos - o Late Show de David Letterman - quando aquilo surgiu. Letterman lançava as últimas piadas sem grande graça, parecendo ele próprio com vontade de encerrar o expediente, quando ela irrompeu por ali. Era a sua estreia televisiva e Janelle Monáe, 24 anos, cinco palmos de rapariga, poupa geométrica à Grace Jones, como sempre de smoking preto-e-branco fazendo lembrar a elegância dos artistas da mítica Motown, não fez a coisa por menos. Olhou à volta, fez pose, lançou a mão ao microfone como se fosse tirá-lo para dançar e atirou-se a uma versão electrizante da canção "Tightrope". Dançou atrevida como James Brown, oferecendo uma mescla esfuziante de R&B e funk.

Quem já a conhecia não ficou surpreendido, mas para aqueles milhões de americanos, e para os que nos dias seguintes viram a sua actuação na internet, foi um momento de enorme revelação.

Tem tudo

Janelle Monae vai ser grande. Tem tudo. A voz: camaleónica. A atitude: vibrante. A história: filha de pai toxicodependente e mãe empregada de limpeza. Os padrinhos: os "rappers" Puff Daddy e Big Boi dos OutKast ou a cantora Erykah Badu, com quem anda em digressão. Os ícones: Alfred Hitchcock e Katharine Hepburn. A confiança: inabalável - é vê-la cantar endiabrada. A ambição, só assim se compreendendo o lançamento de um álbum de estreia conceptual como "The ArchAndroid". E a música, composto de como fazer algo vibrante para o centro do mercado sem ceder aos valores do mesmo, congregando funk, folk pastoral, rock psicadélico, jazz orquestral e cabaret. Apenas não tem a altura e o apelo sensual que se fantasia que as grandes estrelas têm. Mas transformar eventuais fragilidades em potencialidades é a sua especialidade.  

Nasceu nos subúrbios de Kansas City, numa família com dificuldades económicas. Como tantas outras jovens negras aprendeu a cantar na igreja, auxiliando a família com o dinheiro que ganhava nas competições de canto. Em 2004 mudou-se para Nova Iorque, já depois de ter criado um disco, "The Audition", produzido por si e que nunca chegou a ser editado. Em Nova Iorque recebeu uma bolsa da American Musical & Dramatic Academy, mas no processo desistiu de seguir carreira como actriz da Broadway. Fartou-se do ensino formatado e resolveu concentrar-se num novo tipo de musical. Foi para Atalanta, onde, após um dos seus espectáculos, Big Boi dos OutKast a convidou para participar no álbum "Idlewild", concebido como um musical.

Com os OutKast aprendeu imenso, não só em termos musicais mas também de narrativa sónica - em particular com "The Love Below", a metade de André 3000 no magnífico "Speakerboxxx/The Love below". Pouco tempo depois, à amizade dos OutKast juntou uma outra importante: o poderoso Puff Daddy contactou-a através da sua página do MySpace. Janelle pensou que era brincadeira. Acabou por assinar pela Bad Boy, dirigida por Puff, subsidiária da Atlantic.

A revelação deu-se com o EP "Metropolis: Suite I (The Chase)", produzido por Big Boi. Os mais atentos perceberam que algo se passava. Há dois anos o fenómeno Amy Winehouse estava no auge e existiu quem lhe apontasse semelhanças, inclusive nós, nestas páginas, pelo "swing" e pelas alusões aos anos 60. Mas o álbum actual desfaz essas comparações.

Clássica e futurista

O ponto de partida é o clássico "Metropolis" (1927), realizado por Fritz Lang. É uma obra conceptual, com convidados esperados (Big Boi) mas outros surpreendentes, como os excêntricos do rock Of Montreal ou o poeta-cantor Saul Williams. A sequência de canções conta a história da andróide Cindi Mayweather, clone da cantora que se apaixona por um humano e que tem de escapar à polícia para não ser desactivada, acabando por ser encarregue da libertar Metropolis dos seus opressores.

A ficção-científica como inspiração da música negra não é novidade. De Sun Ra aos Funkadelic, dos Sa-Ra Creative Partners a Erykah Badu, muitos já lá foram bater, de tal forma que se fala de afro-futurismo com assiduidade. No caso dela, tudo começou com a série de TV A 5ª Dimensão que via na adolescência com a mãe. Depois vieram "Alien", os livros de Philip K. Dick e um mergulho profundo em "Metropolis", o seu preferido.

Não espanta que o projecto de Janelle navegue entre o apelo clássico e o desejo de futuro. A primeira parte do disco é um concentrado de excelentes canções ("Locked inside", "Tightrope", "Cold war") enquanto a segunda é uma longa viagem pelas margens de um R&B exploratório. A versatilidade é uma das suas características marcantes, misto de extravagâncias vocais e de fantasias rítmicas que desembocam numa pop barroca tão acessível quanto estranha e personalizada.

Há cerca de um mês, no final do seu programa, David Letterman, dizia que há muito tempo não via nada assim. Puff Daddy, que não é conhecido pelos seus dotes de humildade, ajoelhou-se perante o talento de Janelle. Não custa acreditar que muitos o farão nos próximos tempos.

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