As iguanas pós-Katrina

Werner Herzog aproveita uma encomenda de produtor para assinar a sua melhor ficção em muito tempo e para nos recordar como Nicolas Cage pode ser um actor extraordinário

Deixe-se à entrada qualquer expectativa acerca deste "Polícia sem Lei" ser um "remake" ou uma "sequela" do controverso filme maior que outro cineasta maldito, Abel Ferrara, assinou em 1992. O título é mesmo a única semelhança, com Werner Herzog a apropriar-se da "encomenda" de rodar o guião de William Finkelstein para prolongar a sua exploração das zonas escuras da natureza humana. Fá-lo através da descida aos infernos (ou, como estamos em Nova Orleães, aos pântanos) do tenente McDonagh, polícia filho de polícia que um acto pontual, inexplicável e completamente inesperado de caridade cristã para com um prisioneiro durante as enchentes do furacão Katrina deixa com as costas lixadas e uma necessidade de aliviar a dor que o arrasta para círculos progressivamente mais fundos do inferno, sob o olhar bovino de crocodilos melancólicos ou iguanas cantoras.


É, já se percebeu, Herzog a caminhar naquela finíssima corda bamba em que se especializou, entre a tragédia claustrofóbica e a irrisão quase maníaca, acompanhando mais uma viagem interior de um homem preso (um pouco à imagem do próprio cineasta) numa espiral obsessiva aparentemente sem saída. Só que aqui, no que é essencialmente uma encomenda de produtor, Herzog trabalha dentro de uma estrutura de filme de género que parece ter revitalizado o seu cinema de ficção (menos interessante nos últimos anos do que os documentários) e introduzindo uma inesperada contenção visual que torna "Polícia sem Lei" fita mais acessível aos não-iniciados no seu cinema. Claro que, falando de Herzog, a simples ideia de "contenção" é anátema - ninguém corre o risco de confundir o realizador alemão com um qualquer tarefeiro, e este novo filme é uma adenda muito mais do que honrosa à sua vasta filmografia.

E, sobretudo, este é o momento em que Herzog consegue encontrar um actor "alma-gémea" ao nível de Klaus Kinski, um intérprete disposto a segui-lo para onde ele for, disposto a abandonar-se em prol do filme. Esse actor é um Nicolas Cage muito longe dos seus filmes de grande espectáculo - é o Cage alucinado, habitado, torturado de "Um Coração Selvagem" e "Morrer em Las Vegas" que reencontramos aqui, não o astro de "O Tesouro" ou "Sinais de Futuro". E gostamos muito mais deste Cage do que do outro - mas foi preciso Herzog ir buscá-lo e saber o que fazer com ele. O que é mais uma razão para saudarmos o regresso do cineasta (e, já agora, do actor) à sua melhor forma.

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