Isto é uma guerra, dizem os bóeres de Terre"Blanche

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André Visagie é o novo líder do Movimento de Resistência Afrikaner Pedro Cunha

Terre"Blanche era o rosto da extrema-direita sul-africana. Sobre a sua campa, o sucessor jura pela independência bóer. Acha que os negros vão atacar os brancos e portanto os bóeres estão a treinar-se para a guerra. Viagem ao mundo rural, onde 85 por cento da terra continua na mão dos brancos.

Às 10h da manhã, arranha-céus com roupa estendida no centro de Joanesburgo, e a meia-hora de distância as grutas onde viveram os nossos avós australopitecos. Bem-vindos à África do Sul.

Estamos a 1500 metros, mas não se dá por isso. Saindo da cidade, é um infindável planalto. E, à medida que continuamos para Oeste, estufas, milharais, girassóis abertos, fardos de palha, vacas e ovelhas, fazendeiros brancos, trabalhadores negros.

Dezasseis anos após as primeiras eleições democráticas, 85 por cento da terra agrícola continua na mão de brancos, e esta não é excepção. No tempo do apartheid, era a província do Transvaal, uma das regiões dominadas por afrikaners.

Os afrikaners vêm de holandeses, franceses e alemães que se instalaram na África do Sul - os holandeses colonizaram o Cabo no século XVII; franceses protestantes chegaram em fuga às perseguições católicas; juntaram-se-lhes alemães (e ainda escandinavos, irlandeses, escoceses). Descendentes deste caldo, os afrikaners falam afrikaans (uma deriva do holandês), e constituem 60 por cento da população branca. Os outros brancos têm o inglês como língua materna e provêm dos colonos ingleses.

Foi para escapar ao poder inglês que muitos afrikaners subiram do Cabo até estas províncias do Norte, no século XIX. Domaram a terra, e por isso são chamados bóeres, ou seja, agricultores. Mas agricultores-guerreiros, como se provou em duas guerras com ingleses e várias batalhas com povos nativos, como os zulus. Uma delas, a de Bloedrivier, em 1838, tornou-se um mito afrikaner: Deus mostrou-lhes que eram o povo escolhido de África.

É esse mito levado à letra que alimenta a extrema-direita afrikaner, personificada por Eugène Terre"Blanche. Na versão supremacista dele, os bóeres não são apenas europeus que se tornaram africanos. São os verdadeiros africanos.

E a África do Sul é a Terra Prometida.

O mundo já não se lembrava deste punhado de eleitos divinos desde o fim do apartheid, mas a 3 de Abril Terre"Blanche foi encontrado na cama sem calças e a cara desfeita. Espancado com um tubo de ferro e esquartejado com uma panga (faca grande), morreu assim, aos 69 anos.

Dois negros entregaram-se à polícia como autores do homicídio, alegando autodefesa. O mundo receou uma explosão em vésperas do primeiro Mundial em África. Centenas de polícias foram destacados para o funeral. Milhares de afrikaners acorreram.

Tudo isto aconteceu em Ventersdorp, a terreola para onde estamos a avançar.

Avó, mãe, filha

A primeira coisa que se avista é a torre de uma igreja. Igreja, lojas-armazém, bomba de gasolina, vacas na erva. Podia ser uma terreola do Kansas, com duas diferenças: os letreiros estão em afrikaans e só se vêem negros e mestiços na rua. Depois entramos num supermercado agrícola, e há uma branca obesa semiadormecida ao balcão, e atrás dela um branco a limpar as mãos a um pano. Cheira a fritos. Perguntamos pela sede do partido de Terre"Blanche, Movimento de Resistência Afrikaner (AWB, na sigla em afrikaans), onde o sucessor nos espera.

- Viram à esquerda na igreja e seguem em frente - explica o homem.

Parece fácil, mas perdemo-nos até dar com a rua, uma daquelas ruas de brancos com casas de tijolo, relvado e pick ups. A pick up dos bóeres é uma extensão da casa, serve para a fazenda e para os churrascos.

E no pátio de uma das casas, cá está uma pick up, duas mulheres dentro e uma fora, a despedir-se. São avó, mãe e filha, Lina, 65 anos, Alta, 42, e Joanne, 18, todas com os mesmos olhos verde-clarão, que se enchem de lágrimas quando se fala em Terre"Blanche. Cada fazendeiro tem os seus lutos.

- O meu marido e o meu irmão foram mortos há seis anos - diz Lina. - Estavam a apanhar trabalhadores ao pé de Pretória e deram-lhes um tiro.

Quem?

Lina hesita.

- Não se sabe. Até hoje não o apanharam.

Joanne, a mais nova, inclina-se para a janela.

- A situação é muito má. Há um mês, no Free State [província vizinha, a sul], um negro veio com uma faca para o meu irmão. Ele tirou-lhe a faca e prenderam o meu irmão 24 horas. Os polícias também eram negros. Muita gente agora teme pela sua vida. Já ninguém quer viver nas quintas. Mas sem quintas não haverá comida.

- O meu marido tem abelhas na quinta de Terre"Blanche - acrescenta a mãe. - E gostava muito dele.

- Ele era muito gentil para toda a gente - reforça a filha.

A avó começa a chorar.

Às armas

A sede do AWB é aquela casa mais à frente com portão de grades e uma velha carruagem à entrada. Pastores-alemães saltam na relva, à volta do novo líder.

- São os cães do senhor Terre"Blanche, não fazem mal - assegura ele.

Apresenta-se com férreo aperto de mão. André Visagie, 56 anos, cabelo cor-de-palha, sorriso fino e aquela pele dos ruivos que a todo o momento pode ficar vermelha. Além dos cães, rodeiam-no três rapazes de pistola no bolso e cara fechada, a ganharem barriga.

Entramos. Átrio com ursos de peluche, sala de recepção com duas senhoras de província, e depois a sala do líder.

Uma secretária imponente rodeada de retratos ancestrais e na parede principal a enorme pintura de uma águia a segurar nas garras o símbolo do AWB: uma espécie de suástica negra.

André identifica a galeria de ilustres.

- Eram generais da guerra anglo-bóer. E este é o senhor Terre"Blanche a cavalo.

No seu inglês muito claro, diz sempre "Mr. Terre"Blanche".

E, a propósito, nos nomes do AWB parece haver uma estranha predisposição racial. Terre"Blanche significa terra branca.

- E o meu nome, André Visagie, significa cara branca, ou cara limpa - assegura ele, sorridente.

Puxa duas cadeiras e sentamo-nos em frente à secretária, como se fosse um altar. O cadeirão do líder morto mantém-se vazio.

- A situação é tensa, a nossa gente está furiosa. E agora o povo bóer afrikaner reclama a independência porque não recebe protecção do governo neste genocídio. Desde 1994, mais de 3000 fazendeiros foram mortos por negros. E mais de 50 mil brancos das cidades foram mortos por negros.

Segundo as estatísticas, desde o fim do apartheid foram mortas cerca de 650 mil pessoas. Se 53 mil eram brancas, as outras 600 mil eram negras. Ou seja, na África do Sul morrem 12 vezes mais negros que brancos.

Mas os fazendeiros brancos têm sido, de facto, um grupo particularmente atingido. Os sindicatos apontam problemas sociais por trás disso: os negros continuam a ser maltratados, com salários muito baixos, e os fazendeiros usam trabalho imigrante ilegal ainda mais barato, deixando muita gente sem subsistência.

Os dois rapazes negros que mataram Terre"Blanche trabalhavam para ele. Um tem 28 anos e veio do Zimbabwe. O outro tem 15 e é da township vizinha, onde vivem os que trabalham para os brancos. Segundo o seu advogado, pastoreava o gado de Terre"Blanche das cinco da manhã às sete da tarde, por 50 euros por mês, uma taça de comida e alojamento num estábulo.

Porque é que Terre"Blanche estava sem calças? A polícia disse que encontrou sémen nas partes íntimas. Levantou-se a hipótese de ele ter tentado violar os rapazes, ou de lhes ter pago por sexo. Também se levantou a hipótese de terem sido os rapazes a puxar-lhe as calças para o castrar. Crê-se que o fazendeiro lhes devia dinheiro. O processo vai continuar nos próximos meses.

André Visagie não tem dúvidas.

- Foi assassinado por razões políticas. É absurdo pensar num crime sexual. A imprensa fez do senhor Terre"Blanche um racista. Então, tem de decidir se ele é racista ou homossexual com negros. Não bate certo.

Porque haveriam os rapazes de ter razões políticas para o matar?

- Porque ele tinha a capacidade de unir os bóeres.

Mas o AWB é um partido minoritário entre os bóeres.

André sorri o seu sorriso fino, águia por trás das costas.

- Só posso responder-lhe com o número que foi ao funeral, 20 mil. Gente de todo o país.

As reportagens mencionaram "alguns milhares". A BBC falou em três mil. E a maior parte eram fazendeiros que não pertencem ao AWB.

- Mais de mil foram ao funeral em uniformes do AWB.

Caqui, e aquela suástica. Com quanta gente conta, então, o AWB?

- Entre 100 e 150 mil pessoas.

Como sabe isso?

- De terça a quinta estamos a fazer reuniões pelo país, e chegamos a ter sete mil pessoas. Tenho falado do futuro da nação bóer. Recebemos mensagens a dizer que o Zimbabwe vai mandar os seus veteranos de guerra treinar os negros da África do Sul para tomarem as quintas dos brancos, como no Zimbabwe.

"Mata o bóer"

No Zimbabwe, Robert Mugabe levou 4000 fazendeiros brancos a deixar o país. O Presidente Jacob Zuma garantiu que aqui não acontecerão tomadas de terra. Mas o Zimbabwe é o fantasma dos fazendeiros sul-africanos. E para isso tem contribuído Julius Malema, o líder da Juventude do ANC, onde se destacaram homens como Nelson Mandela, Walter Sisulu e Oliver Tambo. Longe dessa tradição conciliadora, Malema é um incendiário que insiste em cantar uma velha canção anti-apartheid com as palavras "mata o bóer". Os fazendeiros acusam-no de incitar assim mortes como a de Terre"Blanche, e o ANC baniu a canção.


- A invasão das fazendas vai acontecer aqui - garante André. - E a nossa primeira linha de defesa é dizer às pessoas que vão para as quintas e resistam. Armem-se para quando forem atacados por esta gente negra. Um milhão de pessoas da nação bóer já fugiu para escapar a este genocídio.

O fim do apartheid gerou medos. Dos 4,4 milhões de brancos da África do Sul, cerca de 800 mil partiram. Mas ao contrário do que muitos temiam, não foram só alguns negros a enriquecer. O poder de compra dos negros subiu 37,5 por cento, mas o dos brancos subiu 83,5 por cento.

Apesar dos programas de discriminação positiva para negros, os brancos ganham hoje sete vezes mais do que os negros.

São ainda os efeitos do apartheid. Não só os negros quase não tiveram acesso a boa formação como, desde o chamado Natives Land Act de 1913, os brancos ficaram com 87 por cento da terra.

O governo quer que até 2014 um terço da terra agrícola passe para negros, mas até agora apenas passaram dois por cento. Isto é combustível para o populismo de Malema.

O mundo admirou a contenção dos negros sul-africanos que depois de décadas de opressão não tocaram na propriedade branca. Quando o AWB de Terre"Blanche tentava impedir a democracia com atentados terroristas, Nelson Mandela manteve o país calmo. Foi um militante do AWB que assassinou o popularíssimo Chris Hani do ANC antes das eleições livres, e Mandela evitou a vingança com um apelo histórico.

Desde que surgiu, nos anos, 70, a história do AWB é de confronto e violência. E por trás dessa história esteve sempre Terre"Blanche, a acicatar multidões, apesar do álcool e de nem sempre se aguentar no cavalo. A jovem bóer Joanne pode recordá-lo como gentil, mas não será essa a memória do empregado da bomba de gasolina que Terre"Blanche espancou e do segurança que tentou assassinar, ambos negros. O segurança ficou paralisado e com danos no cérebro. Eugène Terre"Blanche foi condenado a seis anos e cumpriu três, de 2001 a 2004. Quando saiu, anunciou-se cristão renascido.

Independência ou morte

- Isto é uma guerra - resume o seu sucessor. - É uma guerra que a polícia já não controla e temos de nos proteger. Cada pessoa está armada. Eu tenho as minhas armas de fogo, a minha mulher tem as dela.

E entretanto, as crianças aprendem.

- Ensino os meus filhos a disparar. A minha mais nova tem 13 anos e dispara melhor que eu. Tínhamos nove repúblicas bóeres e queremos a independência. Não estamos disponíveis para ser absorvidos nesta nova África do Sul. Temos a nossa religião, a nossa cultura, a nossa língua.

E porque não ter tudo isso entre os negros?

- Pela mesma razão que os portugueses não vivem com os espanhóis. Não é por serem pretos e brancos misturados, é por serem pessoas de nações diferentes. Porque é que não podemos ter uma nação nossa? É por sermos brancos? O apartheid não era apartheid, era separar nações diferentes.

Com 75 por cento da população apertada em 13 por cento do território.

- As fronteiras fazem paz. Primeiro, vamos abordar o governo e reclamar a nossa terra. Depois vamos para o Tribunal de Haia, para as Nações Unidas e para a Carta das Liberdades.

Nós, quem? O AWB?

- A Frente Afrikaner, formada nos últimos dois anos, que tem todas as organizações afrikaners. Teremos eleições no próximo ano.

E até lá?

- Não temos outra hipótese senão dar treino militar aos nossos homens.

Quantos?

- Os suficientes.

Sorriso fino.

- Não direi quantos. Estão a ser treinados em todo o país.

Não põe a hipótese de partir?

- Não. Podem matar-me e exportar o meu corpo, se quiserem. É o meu país. Os meus antepassados pagaram-no com sangue e eu tenho o direito de ficar.

A campa de Terre"Blanche fica a 15 quilómetros, fora da cidade. André mete-se no carro com os seus três guarda-costas e arrancam. Vão levar-nos até lá.

Passamos a cidade, estrada de asfalto, depois um caminho de terra à direita, sem qualquer sinal. Milho de um lado, capim do outro. Os dois carros saltam entre as pedras. Quando acaba o caminho, é mato mesmo, até umas árvores. Aí, a céu aberto, estão as sepulturas da família Terre"Blanche, várias, desde o século XIX. A campa nova destaca-se por estar coberta de flores embrulhadas em plástico. Como as flores apodreceram, ao longe parece lixo. Depois, ao perto, vê-se uma cruz de madeira no chão com palavras em afrikaans.

- "O nosso herói descansa em paz" - traduz André.

Metade da campa está guardada para a mulher de Terre"Blanche, que se mantém na casa de Ventersdorp e não fala com jornalistas.

- Esta casa está vazia - diz André, apontando a quinta ao fundo. - E vendeu-se o gado dele.

Contempla a cabeceira da campa, onde está o símbolo do AWB, com aquela suástica de três pernas.

- Sabe o que isto significa? São três "7" que representam as três figuras de Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. É o número perfeito, 777, em contraste com o de Satã, 666. É o símbolo de Deus que adoramos.

E não receiam a comparação com a suástica nazi?

- Não, porque a suástica nazi é assim.... - agarra num pauzinho e tenta desenhá-la na terra, mas engana-se. Depois acerta.

- E o círculo vermelho à volta é o sangue de Cristo que nos lava. A nossa organização está enraizada na religião.

Exemplo de um líder no mundo que admire?

André mira o céu.

- Eugène Terre"Blanche.

Um líder do século XX?

- Não consigo pensar em ninguém melhor que Eugène Terre"Blanche.

O que pensa de Nelson Mandela?

- Hum. Um prisioneiro libertado, a servir uma sentença por bombardear gente inocente. Talvez para o seu povo fosse bom, mas para nós não.

E apontando as cores na campa.

- Não reconhecemos a nova bandeira e o novo hino. Não nos importamos de os ter como vizinhos, se querem ter uma taxa de crime única no mundo, não nos importamos. Mas queremos a nossa nação, a nossa língua.

Ninguém tocou no afrikaans.

- Mas agora temos 11 línguas oficiais! É um circo!

Depois cala-se, a olhar a campa.

- Ainda não acredito que o meu líder tenha morrido. E de uma forma tão trágica.

Um dos guarda-costas vem por trás e apaga o desenho da suástica com o pé. O novo líder levanta a cabeça. Agora não há sorriso, e a cara está vermelha.

- Diga às pessoas que se protejam quando vierem para o Mundial. Os criminosos vão apontar aos visitantes.

A toda a volta é capim. O sol desce rápido, como só em África.

O medo continua

No centro de Ventersdorp continuam a só andar negros, mas é difícil encontrar quem fale. Em nenhuma township encontrámos esta relutância.

Júlia, 43 anos, três filhos, está sentada na sua pequena drogaria, onde não parece haver mais de dez coisas para comprar. Grande parte das lojas é de brancos. Isto para ela é uma novidade.

- Trabalhei nas quintas a apanhar milho. A maior parte das pessoas aqui trabalha para os brancos. Alguns são bons, tratam bem as pessoas, outros não.

Mais adiante, Mamase, 28 anos, é empregada de uma loja de móveis. A dona branca está lá ao fundo, ao telefone.

- Eu vivo na township. Venho todos os dias com os meus pés. - Ri-se e aponta os pés.

Conhecia Terre"Blanche?

Ela ri. Não diz nada. Depois diz:

- Conheço-o desde miúda. Lembro-me de estar na escola e a professora nos mandar sair porque pensavam que havia uma bomba do Terre"Blanche.

Cá fora, de boné, está o carteiro Nadazana, 46 anos. Primeiro não quer falar, depois faz muitas perguntas.

- Houve medo por causa da morte do senhor Terre"Blanche - explica, enfim. - Eu cresci aqui. Conheci o senhor Terre"Blanche há muitos anos. Fizeram uma coisa má em matá-lo, mas ele era cruel.

Porquê?

- Era racista. Tivemos medo que houvesse uma vingança dos brancos. As pessoas têm medo de falar, porque podem ver-nos no jornal.

Quem?

- Os gajos do AWB. Estas lojas são todas de gente do AWB.

Nem de propósito, um carro com várias mulheres brancas encosta junto ao passeio e chama Nadazana. Ele debruça-se para responder. Depois o carro arranca.

Nadazana viveu 30 anos sob o apartheid. É um homem experiente.

- Perguntaram o que é que eu estava a falar convosco - explica. - E eu disse-lhes que vocês eram estrangeiros que queriam investir na África do Sul.

Esta é a primeira de várias reportagens até ao início do Mundial.
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