Vila operária em ruínas sumiu-se de repente numa colina de Lisboa

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A derrocada fez 12 desalojados Nuno Oliveira

"Aquilo desabou tudo de um momento para o outro." Francisco José, trinta e tantos anos, nem teve tempo de salvar os aparelhos de ginástica que tinha numa das casas da degradada Vila Martins, na encosta que liga o miradouro da Senhora do Monte, na Graça, à Rua Damasceno Monteiro, por cima do Intendente, em Lisboa.

Pouco passava das 17h30 e os oito tugúrios térreos que em grande parte do século passado alojaram famílias de operários - seis dos quais desabitados e semi-arruinados - desapareceram pela encosta abaixo, no meio do pó e de um estrondo surdo.

"Por sorte não estava ninguém lá dentro", conta uma jovem enfermeira, residente num prédio vizinho, que saiu de casa a correr, a ver se podia ajudar alguém. Os cães pisteiros da PSP reforçariam depois a sua convicção, não encontrando sinal de vida sob os escombros acumulados na base da encosta. O casal de idosos que habitava uma das casas estava ausente e a mulher que vive na outra estava ali, desesperada, a contar como tinha sido obrigada a fugir, ao ver as paredes a rachar e a poeira a levantar-se. Os sem-abrigo que por vezes pernoitavam nas casas abandonadas não tinham sido vistos durante a tarde e os cães, um dos quais feriu uma pata no meio do entulho, não encontraram vestígios deles.

Amontoados no cruzamento da Damasceno Monteiro com as Escadinhas do mesmo nome, por onde se acedia à Vila Martins, através de uma estreita travessa, dezenas de moradores assistiam ao vaivém dos bombeiros e da protecção civil e assestavam baterias contra a Câmara de Lisboa e os senhorios. Uns falavam num primeiro abaixo-assinado há perto de 30 anos, a pedir a demolição dos casebres, que "nem sequer tinham casa de banho nem estavam ligados aos esgotos". Outros já só se lembravam de um protesto com cerca de 20 anos, realizado pouco depois de uma outra "barraca" existente junto à vila ter ido abaixo.

Os mais novos já não tinham conta das cartas, telefonemas, abaixo-assinados e e-mails a pedir uma solução. Nem tão-pouco das vistorias camarárias que confirmavam, segundo garantem, o risco de ruína e a falta de condições de habitabilidade da velha Vila. "O problema é que os senhorios estão-se marimbando. Pagam as coimas e pronto. Fica tudo na mesma", queixava-se um morador de um dos prédios da Damasceno Monteiro, situado mesmo por baixo das casas que agora se sumiram.

Nas traseiras deste edifício ainda estão dois armazéns, já assentes em socalcos, uns metros abaixo e à esquerda da Vila, onde em tempos se fabricou um dos ex-libris de Lisboa: a ginjinha Espinheira, que ainda tem loja aberta nas Portas de Santo Antão. "Há uns 30 anos, quando fizemos o primeiro abaixo-assinado, o senhor Espinheira foi um dos subscritores", recorda um reformado que abriu as portas do seu quarto andar aos jornalistas que não tinham outra maneira de ver o local do acidente.

Do topo do prédio, o rasgão lavrado na escarpa mostra o que sobra de uma das muitas chagas que Lisboa esconde. É um espaço minúsculo, de pouco mais de uma centena de metros quadrados, escondido entre prédios, visível apenas dos telhados. A encosta sobe a pique, quase na vertical, e era por ela que seguiam a escada ao longo da qual se empoleiravam as oito barracas, que já tinham sido casas pobres, de gente pobre, mas de tijolo e cimento. A imagem lembra morros e favelas e põe a nu muito do que a cidade tem de podre. "A encosta está oca por falta de drenagem das águas. Ainda pode cair algum prédio nas escadinhas", dizia um dos moradores.

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