Matthew Herbert: o homem tem voz

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É verdade. Matthew Herbert nem parece o mesmo: agora ele também canta (aliás faz tudo sozinho)

Desiludido com o "egoísmo" da música actual e incapaz de reflectir a turbulência do mundo, Matthew Herbert não faz a coisa por menos: vai lançar três álbuns em 2010. O primeiro, "One One", está aí. Finalmente, o homem tem voz

Da última vez que o entrevistámos, Matthew Herbert disse-nos que encarava os seus discos como pequenos diários de um momento particular da sua vida posta em relação com a experiência do mundo. Tem sido sempre assim. Em "Around The House" (1998), centrava-se nos sons domésticos. Em "Bodily Functions" (2001), nos sons do corpo humano. Em "Goodbye Swingtime" (2003), na época de ouro das "big bands" do jazz. Em "Plat Du Jour" (2005), na produção alimentar. E os exemplos poderiam suceder-se infinitamente.

Em 2010, vai gravar três álbuns. "One One", que acaba de ser lançado, é ele praticamente sozinho, tocando e - surpresa! - vocalizando todas as canções. É mais um diário de um homem vulnerável, perdido em várias metrópoles, entre as quais o Porto, "uma cidade que respira verdade, mas também alguma nostalgia" diz-nos. Em Junho haverá "One Club", registado durante uma noite, no clube Robert Johnson, em Frankfurt, Alemanha. E, em Setembro, sairá "One Pig", captando o ciclo de vida de um porco ou, como ele diz, do animal que é mais abusado pelos homens.
No seu último álbum, gravado com uma "big band", teve de coordenar uma série de músicos. Era um projecto ambicioso, que envolvia grandes meios. Agora lança um disco intimista, feito solitariamente. Foi uma reacção a esse projecto?

Sim, esse projecto envolveu muitas pessoas, demorou dois anos a ser concluído, era uma grande produção, foi satisfatório mas cansativo. Queria distanciar-me, descansar, fazer algo diferente. A "big band" envolvia muita pesquisa musical. Agora apetecia-me fazer canções sozinho de forma pragmática. Fazer este disco, nesta altura, foi uma decisão consciente.

No início do seu percurso, na década de 90, era assim que operava, sozinho. Nessa perspectiva, este disco também é um regresso.

Sim, é verdade. Há 20 anos era assim que funcionava. Mas nos últimos anos passei o meu tempo a colaborar com outros músicos, andando de estúdio em estúdio para tocar com este ou com aquele, levando comigo o meu equipamento. Foi muito estranho regressar ao passado, principalmente porque percebi que não é nada fácil manter-me motivado trabalhando dessa forma. Gosto da interacção, do diálogo, da discussão de ideias.

Uma das novidades reside no facto de ter prescindido de ter vocalistas convidados. É você que canta. Quis criar um disco inteiramente pessoal?

Sim. Ao longo dos anos muitas pessoas foram-me dizendo que devia cantar nos meus discos. Por vezes, em espectáculos ao vivo, cheguei a cantar e numa ou noutra canção dos meus discos também, mas um álbum completo, desta forma, nunca o havia feito. Achei que tinha chegado a hora de assumir a minha voz.

Teve alguém a dirigi-lo? Como se sentiu nesse papel?

Não, ninguém, o que torna as coisas bem mais difíceis. Foi complicado. O meu telemóvel está cheio de números de vocalistas fantásticos e de guitarristas e bateristas fabulosos, sei que qualquer um deles faria melhor, mas convidá-los seria desvirtuar aquilo em que acreditava para este projecto. Este era o disco em que eu faria tudo sozinho. E isso implicava tocar e cantar tudo.

Em algumas canções, o ambiente e o tom vocal que emprega não são distantes de algumas criações de Robert Wyatt.

Não é a primeira pessoa a dizê-lo. É muito lisonjeiro para mim, porque Robert Wyatt é um grande cantor. No meu caso, trata-se mais de ter alguma consciência das fragilidades e operar a partir daí. Sou um homem de estúdio, gosto de estar rodeado de fios e microfones. Estou mais habituado a gravar vozes, a pensar nelas, do que propriamente a utilizar a minha. Não tenho esse treino, essa experiência, mas também não receio a imperfeição.

Este é o primeiro álbum de uma trilogia que editará ao longo do corrente ano. O que o levou a encetar tal operação?

A vontade de criar novas metodologias no meu processo criativo. Onde é que está escrito que temos que lançar um álbum de tantos em tantos anos? Não está. Habituámo-nos a funcionar assim, apenas por motivos industriais, nada mais. Por outro lado, queria reflectir este momento conturbado da nossa história. É absurdo constatar como a indústria do entretenimento nega o momento histórico que estamos a viver, não reflectindo - ou ocultando, como se quiser - um estilo de vida que tem gerado inúmeras convulsões, crises financeiras ou alterações climáticas. Hoje a maior parte da música é egoísta ou indulgente, no mínimo.

No sentido em que não reflecte o estado do mundo?

Quando vemos as principais tabelas de música em todo o mundo e olhamos para as capas dos principais jornais, percebemos que a música não fala de nós, da nossa vida, dos nossos conflitos. É música sem um propósito.

Noutros campos artísticos, da arte contemporânea ao cinema, parece-lhe que essa reflexão sobre a realidade existe?

Não tenho a certeza, mas parece-me que nas artes visuais, na dança ou em filmes que conseguem fugir a uma lógica mercantilista existe essa intenção. Em alguma música também, é claro. Mas na maior parte dela não sinto que isso aconteça. Parece cumprir apenas uma função comercial, nada mais. Como se estivesse divorciada da realidade, da vida, de nós.

É curioso que diga isso porque escolheu como meio de expressão preferencial a música de dança que é - mesmo se erradamente - encarada como sendo puramente hedonista. Nela, a palavra, muitas vezes, tem apenas uma função performativa, não conta uma história, não produz narrativa.

Mas nem sempre foi assim. No início, a música de dança vinha do meio "gay" negro. Tinha um propósito político, mesmo que não fosse explícito. O mesmo aconteceu com o acid-house, nos anos 80. E quando comecei, nos anos 90. A música house constituía a aventura, o risco, a possibilidade de pôr em causa o que vinha de trás, em particular o corporativismo da cultura rock. Agora ouve-se, na rádio, música de dança, ou de qualquer outro tipo, e o panorama é desolador. É como se estivesse dissociada da experiência. É egoísta, nesse sentido.

Faz álbuns a partir de uma ideia particular. No seu caso, a música tem de estar sempre ligada a uma experiência?

Não diria tanto. Diria que não consigo fazer música sem pensar no que é que isso significa. Apenas isso. Por norma dizem que faço álbuns conceptuais. Não me chateia que o digam, mas é interessante porque ninguém diz que um filme que conta uma história ou um livro que tem uma determinada narrativa é conceptual. São apenas um filme e um livro. Os meus discos têm histórias lá dentro, têm um propósito, mas são apenas isso, discos.

Tem assumido o papel de produtor (Micachu & The Shapes ou Invisible) no contexto da sua editora, a Accidental. Ter uma editora como essa, neste contexto de desagregação da indústria, é um acto de teimosia ou de crença no futuro?

Não sei. É difícil. Mas sempre foi difícil. Editoras como a minha nunca fizeram muito dinheiro. Não seria eu que iria fazer...[risos]. Dito isto, também não tenho uma editora para perder dinheiro. Tenho uma editora porque existem projectos especiais, como os que referiu, que valem mesmo a pena. Existem poucas editoras verdadeiramente livres. Acredito que a minha é uma delas. Quando não o puder ser, paciência. Mas por enquanto é. Se quero lançar três álbuns por ano, só tenho de os criar. Se quiser fazer um disco a partir do ciclo de vida de um porco, só tenho de o fazer. É isso. É essa liberdade que me motiva.

Recentemente, uma organização de defesa dos direitos dos animais protestou quando foi noticiado que iria criar um álbum a partir do ciclo de vida de um porco. Como reage a isso?

Precipitaram-se. Acompanhei o ciclo de vida do porco, desde Agosto do ano passado. O meu propósito é apenas aprender. Tenho consciência de que a indústria da comida em todo o mundo tem muito que se lhe diga. Enquanto cidadão não tenho o direito de saber como os animais são mantidos ou mortos. É-me vedado esse conhecimento. É frustrante. Acompanhei todo o processo, menos a sua morte; nem no matadouro, nem na quinta onde o porco viveu, me foi permitido registar a sua morte. É como se às pessoas que comem carne fosse vedada a responsabilidade de perceber as implicações dessa decisão. Com este disco quero perceber esse processo. Não tenho uma agenda para fazer sofrer animais, até porque o porco deve ser o animal mais abusado pelo homem. No limite, é isso também que o meu trabalho reflectirá.

Esse será o terceiro disco. O segundo, já anunciou, será um "álbum comunitário". O que quer dizer com isso?

É música experienciada em comunidade, como se fosse um ritual, num clube de dança. Neste caso, num clube em Frankfurt, na Alemanha, onde coloquei microfones em todos os recantos - no bar, na pista de dança, na cozinha, até nas casas de banho. São três horas de gravações que reproduzem os mais diversos sons e será um disco de música de dança. Serve de contraponto a "One One", que é uma obra muito mais claustrofóbica, no sentido em que me confronto comigo próprio de forma consciente.

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