Teme-se uma situação explosiva na República da África do Sul

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Eugène Terre'Blanche Howard Burditt/Reuters/arquivo

A oposição sul-africana ao Governo do Congresso Nacional Africano (ANC) avisou que o assassínio do líder de extrema-direita Eugène Terre'Blanche poderá criar uma situação potencialmente explosiva, trazendo de novo a lume todas as tensões dos tempos do apartheid.

“Ninguém tem o direito de exercer justiça pelas suas próprias mãos”, disse o Presidente Jacob Zuma, que é de igual modo o líder do ANC, partido maioritário desde as primeiras eleições multipartidárias e multirraciais efectuadas na África do Sul, em 1994, após o fim do regime segregacionista.

“É neste contexto que a morte de Terre'Blanche deve ser condenada, independentemente da forma como os seus assassinos pensem que teriam alguma justificação. Não tinham o direito de lhe tirar a vida”, diz um comunicado distribuído pelo gabinete de Zuma.

Este crime verificou-se numa altura de crescente polarização racial na República da África do Sul, bem patente na polémica sobre o facto de a justiça ter ilegalizado uma canção que costumava ser cantada pelo líder da ala juvenil do ANC, com o refrão “Morte ao Boer”. E a verdade é que Eugène Terre'Blanche sempre se apresentou como o supra-sumo dos boers (fazendeiros, em holandês), os sul-africanos de ascendência holandesa, francesa e alemã, politicamente mais à direita do que os seus compatriotas brancos de ascendência britânica. Estes têm assumido tradicionalmente uma postura relativamente liberal.

O Movimento de Resistência Afrikaner (AWB), de Terre’Blanche, afirmou que vingaria o assassínio do seu líder carismático, mas também aconselhou os seus militantes a não actuarem antes de uma reunião que, no dia Primeiro de Maio, deverá determinar o futuro do grupo, cuja intenção tem vindo a ser a proclamação de uma república boer independente, um Boerestaat, como chegou a haver no século XIX, quando era clara a supremacia branca, não tendo os negros quaisquer direitos.

“A acção específica será decidida na nossa conferência”, declarou Andre Visagie, secretário-geral do movimento, cuja bandeira é muito parecida com a nazi: em vermelho, branco e negro, tem ao centro um símbolo que se apresenta como que uma derivação da cruz suástica.

Terre’Blanche, de 69 anos, estava a aparecer pouco em público desde que em 2004 foi libertado da cadeia, depois de ter cumprido três dos cinco anos a que fora condenado por tentativa de assassínio. Vivia discretamente, ao contrário dos seus antigos desfiles a cavalo, mas o seu partido andava há dois anos a procurar ganhar novo fôlego e a criar uma frente unida com outras forças da extrema-direita.

À direita de Salazar e de Smith

O Afrikaner Weerstandsbeweging (AWB) foi fundado em 1970, para combater o que pessoas como Eugène Terre’Blanche consideravam a linha liberal do primeiro-ministro John Vorster, que tinha sido encarado no resto do mundo como um nacionalista de extrema-direita, aliado dos regimes do rodesiano Ian Smith e do português Oliveira Salazar.

A sua intenção era criar na África do Sul estados só para brancos, onde os negros apenas poderiam entrar para trabalhar, sem quaisquer direitos de cidadania ou de residência. E chegou a ameaçar tomar o poder pela força se acaso o Governo branco capitulasse perante o ANC, que existia desde 1912 e que travou uma longa luta para acabar com o apartheid.

Ebrahim Fakir, analista do Electoral Institute of Southern Africa, disse hoje à rede de televisão Al Jazira ser improvável que a causa dos extremistas brancos que era personificada por Eugène Terre’Blanche morra com ele. E é um facto que os brancos continuam a deter grande parte do poder económico e das terras, apesar de a maioria negra ter assumido há 16 anos a governação.

O arcebispo emérito da Cidade do Cabo, Desmond Tutu, disse há pouco tempo, no vigésimo aniversário da libertação de Nelson Mandela, que nem tudo são rosas na África do Sul, país de 49 milhões de habitantes onde os brancos ganham em média sete vezes mais do que os negros e pelo menos uma em cada quatro pessoas não tem emprego.

“Quando olhamos à nossa volta e vemos o número dos nossos compatriotas a viver na miséria, a frequentar escolas sub-equipadas ou a acamar-se como sardinhas em pequenos autocarros inseguros, interrogamo-nos sobre quando é que o fruto da democracia chegará às mesas de todo o nosso povo”, disse o prelado, distinguido em 1994 com o Prémio Nobel da Paz.

Mais de um milhão de famílias vivem em casas sem água corrente nem saneamento básico, em 2600 enormes bairros de barracas, apesar de a África do Sul ser a maior economia de todo o continente africano. A esperança de vida é de apenas 53 anos para os homens e 57 para os mulheres, enquanto mais de 10 por cento da população se encontra seropositiva e o índice de criminalidade é um dos maiores de todo o mundo.

“Excluídos do antigo regime não estão hoje muito melhor”

“Os excluídos do antigo regime não estão hoje muito melhor”, destacou nessa altura a AFP, para mostrar que nem tudo tem vindo a correr pelo melhor desde que a figura mais carismática do ANC foi libertada da cadeia e o Presidente Frederik de Klerk decidiu acabar com o sistema de apartheid.

O rendimento mensal médio dos negros aumentou 37,3 por cento, desde 1994, o ano em que se realizaram as primeiras eleições abertas a toda a população e em que Mandela substituiu De Klerk na chefia do Estado. Mas o dos brancos, ironicamente, subiu 83,5 por cento, tendo sido esta minoria financeiramente beneficiada com as mudanças destas duas últimas décadas.

Foi neste contexto de profundo descontentamento de alguns negros por não existir ainda um maior equilíbrio e mais justiça na sociedade sul-africana que se verificou agora o assassínio do símbolo máximo do racismo branco, erguendo de novo o fantasma de um regresso aos ódios do passado.

Segundo a agência noticiosa sul-africana Sapa, Terre’Blanche teria sido espancado até à morte, ontem à noite, na sua fazenda, por dois trabalhadores negros, respectivamente de 16 e de 21 anos, os quais alegaram que não estavam a ser pagos, sentindo-se portanto como escravos. E isto poderá funcionar como o rastilho para que venha à luz do dia muita tensão acumulada.

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