De pesadelo em pesadelo, com Céline até ao fim da noite

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Este misantropo anti-semita, acusado de ter sido "colaboracionista", influenciou gerações de escritores como Bukowski, Miller, Genet, Kerouac ou Lobo Antunes. Escreveu uma das obras-primas da literatura, "Viagem ao Fim da Noite", que acaba de ser reeditada

Em 1932, um tal Dr. Destouches, médico desconhecido que fazia pela vida "entre calotes e borlas" num consultório manhoso nos arrabaldes de Paris, pediu emprestado à mãe o nome Céline e, sem antes se fazer anunciar com qualquer publicação, decidiu inquietar as sossegadas letras francesas e fazer desse ano uma das grandes datas da literatura do século XX. "Viagem ao Fim da Noite", um dos mais importantes romances de sempre, chegou assim de chofre, como um vento maligno que vocifera imitando o som de fanfarras dissonantes e que transforma em cadáveres sem préstimo as velhas carcaças da sintaxe bem comportada. A obra prometia, logo nas primeiras páginas podia-se ler: "(...) é este grande amontoado de lazarentos do meu género, remelosos, pulgosos, tiritantes, que vieram encalhar aqui perseguidos pela fome, pela peste, pelos tumores e pelo frio, que chegaram vencidos dos quatro cantos do mundo. Não podiam ir mais longe por causa do mar. A França é isto e são estes os Franceses."

Nesse ano, o livro não recebeu o prémio Goncourt e os críticos não sabiam bem o que dizer; o público leitor, esse aderiu quase de imediato. Mas o que fizera e por onde andara este Dr. Destouches, que na coisa literária assinava agora Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), e que acabara de se instalar na literatura francesa sob o signo da ruptura, apenas dez anos depois da morte de Proust, o escritor da memória?

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Desde novo que trabalhava nos arredores de Paris - onde a mãe tinha uma loja de rendas - ora na confecção de bonés ora em joalharia. Mas em 1912, num acto de rebelião contra os pais, alista-se no exército francês. Chega ao posto de segundo-sargento e participa na I Grande Guerra onde é ferido num braço depois de uma acção heróica, é medalhado e tem honras de capa na revista "Illustré National"; depois é desmobilizado por incapacidade física. (Um à parte: muitos anos depois, sem se perceber porque razão, talvez inspirado por uma sua personagem, Céline começa a afirmar que o ferimento sofrido na guerra foi na cabeça e não no braço, e de tal gravidade que obrigou os médicos militares a fazerem-lhe uma trepanação do crânio - facto que não é corroborado pelos biógrafos que consultaram a documentação do hospital onde Céline esteve internado.)

Depois trabalhou em Londres e em África (cerca de um ano nos Camarões como agente comercial de uma companhia florestal) de onde regressou com Malária. Entretanto, ia fazendo estudos como auto-didacta para ser admitido no curso de Medicina. Em 1924, defende a tese "Vie et l'Oeuvre de Philippe Ignace Semmelweis", a biografia de um médico húngaro, incompreendido e forçado a abandonar a medicina em Viena, que lutou pela importância da assepsia no parto. Para muitos, este seu primeiro trabalho é já um prenúncio do lirismo que virá a marcar toda a sua obra literária. Começa então Céline a trabalhar para a Sociedade das Nações (uma espécie de prelúdio da ONU), efectuando várias viagens ao seu serviço, nomeadamente à América do Norte e a África. Depois abrirá um consultório nos arrabaldes de Paris e trabalhará no dispensário municipal de Clichy entregando-se como uma "irmã da caridade" à "suavização das doenças".

Para se estrear na literatura, aproveita a sua vivência sórdida da guerra. "Viagem ao Fim da Noite", no seu pessimismo desamparado da natureza humana, é um mergulho no horror. "Somos tão virgens no Horror como na volúpia. Como podia eu suspeitar deste horror ao deixar a Praça de Clichy? Quem saberia prever, antes de entrar verdadeiramente na guerra, tudo quanto esconde a alma sórdida, heróica e calaceira dos homens? Nesse momento eu era arrastado numa fuga em massa para o assassínio em comum, para o fogo... Era uma coisa que subia das profundezas e acabara por chegar."

Viagem em busca de nós

Uma das razões do choque provocado pelo romance, foi o uso dado à linguagem, uma mistura de vernáculo estilizado com elementos eruditos, com um sentido musical inigualável, que vem romper com as frases grandiloquentes então em voga. É uma linguagem natural mas inventada, de uma oralidade quase à maneira da tragédia grega, longe de ser uma reprodução do falar dos miseráveis, é, como nota George Bermanos, "feita, justamente, para exprimir o que essa mesma linguagem de miseráveis não saberia nunca exprimir, a sua alma pueril e sombria, a sua sombria infância".

Céline vocifera a caminho dos confins da noite do homem, grita por gritar só para ter o prazer de saber que está vivo e que ainda lhe resta tempo para apregoar aos sete ventos a miséria humana que ele viu, que sentiu, com que ele teve que lidar. "À beira do matadouro já não especulamos muito com as coisas do futuro, só pensamos em amar durante os dias que nos restam porque é esse o único meio de esquecermos um pouco o corpo que dentro em breve vai ser rasgado de alto a baixo."

A "Viagem" vai a caminho, por vezes sem saber por onde, afastando-se de sentimentos refinados, mas apenas com uma certeza, não vai por onde os outros querem que ele vá nem diz o que quer que digam. Há em Céline uma errância pelo sórdido que habita no mais fundo de nós e que não é sã nem agradável, mas é a que temos. "Em tudo, a grande derrota é esquecer, sobretudo o que nos fez bater a bota, e batê-la sem nunca chegarmos a compreender até que ponto os homens são sacanas. Quando estivermos de pés para a cova de nada vale armar em espertos mas também não devemos esquecer, devemos contar tudo, sem trocar uma palavra, sobre o que mais perverso vimos nos homens, e só então esticar o pernil e descer. É trabalho que vale uma vida inteira."

Ele tem uma visão anti-heróica do sofrimento humano, o que muitas vezes se pode confundir com cinismo (que também existe, e muito, na obra). E essa visão leva-o sobretudo na viagem em busca de si mesmo, de nós mesmos, rejeitando as pieguices e avançando com a cabeça levantada. "É preciso desconfiar em absoluto do coração, ensinara-me a guerra e de que maneira!" Ou então: "Como nós mudamos! Nessa altura eu era uma criança e fazia-me medo, a prisão. É que ainda não conhecia os homens. Nunca mais vou acreditar no que eles dizem, no que eles pensam. Dos homens e só dos homens devemos ter sempre medo."

Moralista de esqueda,

anti-semita...

Pouco tempo depois de o romance ter sido publicado, muitos foram os intelectuais franceses que viram o seu autor como um "moralista de esquerda". Céline iludiu-os: a mulher de Aragon, a russa Elsa Triolet, traduziu "Viagem ao Fim da Noite" para a sua língua materna. Simone de Beauvoir chegou a aprender muitas passagens de cor, dizendo, mais tarde: "O seu anarquismo parecia próximo do nosso. (...) Foi lá que Sartre bebeu." No prefácio à edição russa, surge a frase: "Céline escreveu uma verdadeira enciclopédia do capitalismo agonizante". O próprio Trotski afirmou que "está ali o alicerce psicológico do desespero". Com tudo isto, Céline acabou por ser, inevitavelmente, convidado a visitar a URSS, depois de ter ganhado muitos rublos em direitos de autor, mas veio de lá indignado; escreveu o panfleto anti-soviético "Mea Culpa" e esses mesmos intelectuais franceses nunca mais lhe perdoaram.

Entretanto, publicou o seu segundo romance, "Morte a Crédito", e mais uma série de panfletos anti-semitas (três ao todo, que muito mais tarde excluiu das suas obras). Eclode a II Grande Guerra e a França é ocupada. Céline não se mostra um "resistente", acabando por, quase no fim, se juntar ao governo colaboracionista de Vichy.

Terminada a guerra, mais uma vez não lhe perdoam. A sanha contra os "colaboracionistas" leva um tribunal francês a acusá-lo de traição e a pedir a sua extradição da Dinamarca, onde se refugiara. O que não chega a acontecer. Céline, a mulher e o gato, ficam com residência fixa com "o Báltico diante do nariz". Mais tarde, é condenado a um ano e meio de prisão e a uma multa pesada. Em 1951, beneficia de uma amnistia (sem lhe ser retirado o estatuto de "indignidade nacional") e regressa a França. Instala-se em Meudon, na casa onde viverá até à morte, escrevendo e ironizando sobre o mundo e sobre si próprio, como o fez numa entrevista: "No entanto, um sujeito que escreve livros! ... Sempre me pareceu uma aldrabice, o tipo que vai sentar-se à mesa e garatuja grandes pensamentos. Acho isso um grande abuso, imodesto e sem vergonha. Essa forma de olhar a história não a acho nada séria, e apesar disso continuo... O que já não tem importância nenhuma ...

Morreu a 2 de Julho de 1961, um dia depois de ter terminado o último romance, "Rigodon".

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