Homem sem cabeça

Raúl Peralta dança, quer conquistar os concursos televisivos de imitadores de John Travolta. E Raúl mata. Quem é Raúl? É uma "coisa" terrivelmente silenciosa

Esta letargia, esta forma de o mundo parecer acordar com dificuldade depois de um eclipse, sem ainda conseguir articular, podemos reconhecê-la. Não é questão de tráfico cinéfilo, é a questão de uma geração. É que se dez anos separam o chileno Pablo Larraín (34 anos), o realizador de "Tony Manero", da argentina Lucrecia Martel (44, a autora de "O Pântano" ou "A Mulher sem Cabeça"), ambos se movem dentro do silêncio que o legado de ditadura dos seus países lhes deixou: uma espécie de amnésia funcional. Larraín ou Martel não "denunciam", note-se. Enroscam-se, envolvem-nos, nessa terra queimada. É assim Santiago do Chile no final dos anos 70 onde se move esta entidade: algo entre o animal e a máquina (de morte) - uma contradição ambulante, portanto -, sem interioridade, sem política, sem afecto. É Raúl Peralta, pretendente ao título de "Tony Manero chileno" (Tony Manero era a personagem que John Travolta interpretava em "Febre de Sábado à Noite", filme, de 1977, de John Badham). Raúl dança, quer conquistar os concursos televisivos de imitadores, e Raúl mata: é um "serial killer".


Quem é Raúl? O âmago da alienação chilena, de uma passividade mesquinha que abdicou da sua humanidade, rodeada de América e do seu imaginário (Travolta e o "disco"...) por todos os lados? Está "Saturday Night Fever" no lugar do imperialismo americano, da CIA, que ajudou Pinochet e o seu golpe?
Raúl, e a frieza aleatória dos seus assassinatos, é Pinochet?
Pablo Larraín, o realizador, "responde", se quisermos, apenas com indícios e paradoxos. Sem "statements". Onde ele é de uma agressividade que tem algo de calculista, é na brutalidade de Raúl. E para isso teve a cumplicidade maior de um actor, Alfredo Castro, também um dos autores do argumento.

O que se passa com Alfredo Castro, em "Tony Manero", nada tem a ver com o registo de "interpretação" num filme. Nem com a habitual parafernália que rodeia a "apresentação" de uma personagem. É uma coisa terrivelmente silenciosa. O que é isto? É, para já, um "retrato" para o cinema contemporâneo. E é algo de outra natureza. Tem a ver com a "performance". Raúl, silhueta de pássaro, nunca fala, a não ser quando dança. Isso é o mais próximo que conseguimos chegar da sua "humanidade". E é o mais perto que o filme chega da "deixa" de uma personagem numa narrativa "convencional". As sequências de dança não são, por isso, momentos de exibição (como na "Febre..."), desenlace "espectacular" de uma narrativa ou até forma de redenção; é a difícil articulação de uma personagem, que só assim consegue "dizer-se"...

É verdade que "Tony Manero", sendo tão determinado neste horror, nesta presença, cria um vácuo à volta. Um vazio que é preenchido em perda: o "resto" parecer concretizar-se em dificuldade, com um último fôlego que não permite transcender o episódico. É como se, tendo criado a besta, não tivesse monstruosidade cinematográfica à altura. Ou seja, Larraín (ainda) não é o monstro de insidiosa sofisticação chamado Lucrecia Martel. Está a fazer-se. Esperamos pela continuação da trilogia que dedica ao Chile de Pinochet.

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