Ser ou não ser Alice

Foto

Aos olhos de Tim Burton "Alice no País das Maravilhas" é a história de uma rapariga desajustada que entra na toca de um coelho à procura de si própria. E é isso que fazem o realizador e a sua equipa favorita de desajustados, com Johnny Depp em Chapeleiro Louco envenenado pelo mercúrio e Helena Bonham Carter numa Rainha Vermelha de cabeça desmedida.

"Now you're almost Alice". Quando a Lagarta diz esta frase já estamos a caminho do fim em "Alice no País das Maravilhas", o filme de Tim Burton. Saber se a rapariga de 19 anos, cabelos encaracolados e vestido azul, que aumenta e diminuiu à medida das necessidades, é ou não a "verdadeira Alice" é uma dúvida que atravessa todo o filme. Desde que ela, a correr atrás de um Coelho Branco, cai por um interminável buraco - e é um buraco mais negro e inquietante do que o de qualquer outra história de Alice -, até esse momento perto do fim em que a Lagarta lhe revela que, finalmente, ela é já "quase Alice".

Muitos anos depois da sua primeira ida ao País das Maravilhas (o Wonderland que ela esqueceu completamente), são os habitantes deste mundo - que afinal se chama País Subterrâneo (Underland) - que precisam dela. O Coelho é enviado à superfície para a encontrar, mas é preciso saber se ele trouxe consigo a Alice certa. "És a verdadeira Alice?", perguntam-lhe. "Isso tem sido objecto de alguma discussão", responde, sinceramente confundida, a rapariga.

Terá a dúvida atravessado também a cabeça de Tim Burton desde que decidiu lançar-se a filmar - em 3D e para a Disney - o clássico de Lewis Carroll (1832-1898), que junta "Alice no País das Maravilhas" e "Alice do Outro Lado do Espelho"? Terá o realizador de "Eduardo Mãos de Tesoura" e "O Estranho Mundo de Jack" pensado alguma vez "a minha Alice será a verdadeira Alice?".

Há uma semana, em Londres, em conversa com os jornalistas, Burton, óculos enormes, cabelo despenteado, gestos disparados como se o corpo não tivesse controlo sobre as extremidades, explicava que Alice é mais um universo do que uma história com princípio, meio e fim. "Nunca senti que houvesse uma versão definitiva. Mas [a história] faz de tal maneira parte da nossa cultura - conhecemos o mundo de Alice através de bandas, de músicas, de artistas. Senti que era um território aberto".
No entanto, acredita, para se transformar num filme falta-lhe um fio narrativo. "O livro é uma sequência de acontecimentos e encontros. Precisava de uma âncora". Quem haveria de explicar melhor esta ideia seria Johnny Depp, o actor com quem Burton trabalha há 20 anos (desde "Eduardo Mãos de Tesoura"), numa conferência de imprensa em Londres: "A história é tão episódica e abstracta que aquilo de que nos lembramos melhor são as personagens. Por alguma razão elas permanecem connosco".

Salvar Underland

Para o realizador, se só uma dessas personagens pudesse simbolizar o mundo de Lewis Carroll seria o Chapeleiro Louco. Por isso desafiou Depp para um papel que, ao contrário do que acontece no livro, é central no filme. Depp quis que o Chapeleiro entrasse para a sua galeria de personagens alucinadas, torturadas. "Queria que ele fosse 'damaged'", explica - a tradução não é fácil mas percebe-se exactamente o que ele quer dizer. O Chapeleiro, cabelo cor-de-laranja, chapéu alto, dedos sujos, perturbantes olhos verdes (artificialmente aumentados, entre 10 e 15 por cento maiores do que os do actor, e diferentes um do outro), tem um passado e carrega uma dor.

No País Subterrâneo de Burton - e não era esse, afinal, o título da primeira versão que Lewis Carroll fez desta história? - vivem muitas das personagens mais conhecidas do livro: o Gato Cheshire, com o seu sorriso que fica a pairar no ar mesmo depois de ele se ter desvanecido, os irmãos Tweedledee e Tweedledum, a assustadiça Lebre de Março, a colérica Rainha Vermelha, a beatífica (ou nem tanto) Rainha Branca, o interesseiro Valete de Copas.

Mas as cores da primeira versão que a Disney fez esmoreceram e o que Alice encontra desta vez é um mundo cinzento e tristonho, em que todos vivem aterrorizados sob o domínio da insuportável Rainha Vermelha. E se a Alice original é um total "nonsense", em que a menina salta de uma festa de "desaniversário" do Chapeleiro Louco, em que o chá é despejado continuamente nos recipientes mais absurdos mas raramente bebido, para um jogo de "croquet" com a Rainha de Copas, com flamingos em vez de tacos e porcos-espinhos em vez de bolas, neste filme Alice tem um objectivo: salvar Underland e ajudar os que nunca a esqueceram. E isso, apesar da loucura das personagens, faz desta uma história bastante mais convencional do que a que Carroll criou no século XIX.

Para salvar os amigos Alice tem que lutar contra o terrível dragão Jabberwock, que está ao serviço da Rainha Vermelha. No livro Jabberwock aparece apenas num poema de "Alice do Outro Lado do Espelho" -  "Beware of the Jabberwock, my son! The jaws that bite, the claws that cartch!". No filme a argumentista Linda Woolverton transformou-o numa personagem muito mais importante.

Uma viagem interior

Mas regressemos por um momento à superfície e ao início da história. Depois da morte do pai, Alice sente-se ainda mais desajustada em relação ao mundo que a rodeia e às regras de comportamento da Inglaterra vitoriana. O pai parecia ser o único capaz de lhe garantir, quando ela se interrogava se seria louca por ver animais que falavam e outras coisas extraordinárias, que "todas as pessoas boas são loucas". Agora mais ninguém parece acreditar nisso, e todos estão mais preocupados com a festa de noivado em que Alice vai ser pedida em casamento por um lorde emproado do que com o coelho branco, de colete e relógio de algibeira, que acaba de passar por ali a correr.

"A viagem de Alice é muito pessoal e interior. É uma viagem que todos fazemos quando passamos de crianças para adultos e estamos a tentar descobrir quem somos", explica Tim Burton. "Há sempre coisas a passar-se no País das Maravilhas, mas no centro de toda a história está esta viagem interior". Burton só sabe filmar o que conhece, e se há coisa que conhece é a sensação de ser um jovem desajustado, que não pertence exactamente ao mundo em que vive. "Cresci com essa sensação de categorização e nunca gostei disso. Quando numa fase das nossas vidas nos sentimos assim continuamos sempre a sentir-nos assim. Mesmo quando casamos, temos filhos, amigos, somos felizes, todas as coisas boas da vida, se alguma vez tivemos essa experiência ela nunca nos abandona. Tentamos que ela se vá embora mas ela fica".

Os seus filmes são sobre isso - Alice "é uma espécie de resistência à categorização", diz - e a equipa que junta à sua volta encaixa nesse desajustamento generalizado. Johnny Depp, para começar (e é o próprio que diz que "houve sempre um atalho" entre ele e Burton, e não esquece que quando era considerado "veneno de bilheteira", foi Burton quem insistiu contra tudo e todos que era ele o Eduardo Mãos de Tesoura).
Mas também Helena Bonham Carter (a Rainha Vermelha), mulher de Burton desde que ele a dirigiu em "O Planeta dos Macacos" (2001), e que aparece para a conversa com os jornalistas espreguiçando-se dengosamente, com um cabelo tão extraordinariamente caótico como o do marido, e fazendo vozes para explicar que a filha de dois anos adora "monssstresss" e que nisso "é igual ao pai".

E agora também a estreante Mia Wasikowska, uma australiana plácida que confessa que até há pouco tempo se sentia igualmente desconfortável em situações sociais, que tinha tendência para ficar sozinha e fugir de festas, e que andava, no fundo, à procura da sua toca de coelho para fugir para outro mundo.

Não é por isso de estranhar que todos eles tenham mergulhado de cabeça quando Burton lhes apresentou a oportunidade de passarem para o País das Maravilhas - por muito subterrâneo que este fosse. E o que encontram do outro lado foi um mundo verde. Ou seja, num filme em que uma parte significativa das personagens são digitais e em que "nunca ninguém tem o tamanho certo", como diz Burton (Alice aumenta e diminui, a Rainha Vermelha tem uma cabeça muito maior do que o normal, etc.), os actores reais tiveram que representar num espaço vazio, e verde, em que as outras figuras eram bolas de ténis ou simplesmente pedaços de fita autocolante.
"Johnny foi o único que realmente gostou das filmagens", conta o realizador. "Ele gosta de coisas estranhas, por isso achou piada representar para bolas de ténis verdes. E usou isso para a personagem. Para os outros foi trabalhar no vazio". Helena Bonham Carter, por exemplo, não se podia esquecer de que a sua cabeça era enorme, e que "colidia com todas as coisas". Todos reconhecem que o ambiente foi alucinado.

Burton, que nos últimos oito meses trabalhou na montagem, descreve a experiência como a construção de um "puzzle". E os actores contam que só na ante-estreia londrina conseguiram finalmente ter uma ideia de como o verde que os rodeou durante tanto tempo se transformou num País das Maravilhas em 3D -  tecnologia que o realizador usou por achar que fazia todo o sentido nesta história particular e com este material (o que não significa que se tenha rendido definitivamente). 

E Alice no meio de tudo isto? Terá ela perdido a sua "muiticidade" ("muchness"), como receia o Chapeleiro Louco? Será que, passados vários anos da sua primeira visita ao País das Maravilhas, agora à beira de se tornar adulta, já não é a mesma Alice? Será que, mais distante de Lewis Carroll e mergulhada no universo "burtoniano", é outra Alice? Se calhar são perguntas que fazem tanto sentido como a que o Chapeleiro insiste em fazer: "Em que se parece um corvo com uma escrivaninha?".

Se calhar, como diz Burton, não há uma Alice certa ou uma Alice errada - a história é "território aberto" e pertence a quem se apoderar dela. 
Os problemas de identidade não são novos. Mesmo no livro, Alice sofreu sempre dúvidas desse tipo. "Será que me modifiquei durante a noite? Deixa cá ver!", interroga-se depois de cair pela toca do coelho e quando tenta passar por uma porta pequenina para o País das Maravilhas. "Ainda seria a mesma quando me levantei esta manhã? Tenho a vaga sensação de me ter sentido um pouco diferente. Mas se não sou a mesma, então a pergunta seguinte será: - Quem serei eu, afinal! - Ai, esse é que é o grande problema!".

Na verdade não é um problema. Se formos fiéis ao espírito original da história e se, como Alice, de espada Vorpal na mão frente ao Jabberwock, conseguirmos "pensar em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço" e acreditar em todas elas, então também nós seremos já "almost Alice".

Sugerir correcção
Comentar