"Comportem-se como gente civilizada ou estão a abrir a porta a uma resposta brutal"

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A sua obra como escritor reflecte o ritmo do cinema e das séries de acção. O seu herói é um "cowboy" urbano solitário que, em "Amanhã Será Outro Dia", fareja o terrorismo bombista. Conversa com o britânico Lee Child sobre os seus temas de eleição

Lee Child, pseudónimo de Jim Grant, é um autor britânico radicado em Nova Iorque que tem arrebanhado prémios com os seus "thrillers", onde não poupa esforços ao herói por si criado, Jack Reacher, ex-combatente da Polícia Militar americana, duro e solitário, de porte atlético e senhor de infindáveis recursos físicos e psicológicos.

Child estudou na King Edward's School em Birmingham - a "alma mater" de outros escritores como J.R.R. Tolkien e Enoch Powell - e iniciou a sua carreira na Granada Television, onde fez parte das equipas que produziram algumas das suas mais memoráveis produções - "A Jóia da Coroa", "Brideshead Revisited", "Cracker" e "Prime Suspect" - que incluíram uma pesquisa alargada e procura aturada de informação. Não é de estranhar que a sua obra como escritor reflicta o ritmo do cinema de acção e das séries televisivas e que o herói tenha o mau humor de um John McClane (Bruce Willis na série "Die Hard") ou a solidão de um Jack Bauer (Kiefer Sutherland em "24 Horas")

Em "Amanhã Será Outro Dia" Reacher apanha o metro em Bleecker Street em direcção à parte alta de Manhattan. Por deformação profissional observa as poucas pessoas que seguem na carruagem àquela hora tardia. Uma mulher chama-lhe a atenção: ele está treinado para reconhecer os sinais que apontam para o reconhecimento de uma bombista suicida. São 12 os pormenores que ele conhece de cor e que caracterizam os que estão prontos a morrer, matando, e ele sente-se compelido a intervir. No entanto, algo não bate certo.

É a partir deste incidente que Child compõe uma trama complicada em que entram bons e maus polícias, bons e maus espiões, maus - muito maus - bandidos e boas - muito boas - pessoas que o ajudam a vencer as forças do Mal numa cidade frenética e labiríntica onde tudo pode acontecer, em cada esquina.  

Com mais dois títulos publicados em Portugal - "Rumo ao Inferno" e "Do Fundo do Abismo" ambos pela Asa - e um público fiel, Lee Child ofereceu-se para responder a algumas perguntas do Ípsilon.

O seu trabalho anterior, na televisão, teve algum peso quando resolveu tornar-se escritor?

Não, nesse tempo sentia-me feliz com o que estava a fazer e nem pensava tornar-me romancista. Quando se deu essa mudança, tive o cuidado de não transpor demasiadas técnicas de televisão no meu novo trabalho de escrita, uma vez que são linguagens diferentes.

Um livro que tenta ser um guião, ou vice-versa, acaba por se transformar num mau exemplo de ambos. No entanto, a nível básico creio que mantive a noção de que a minha intenção é sempre a de agradar a uma audiência que não é constituída por mim, pelos meus amigos, pelos críticos, mas por homens e mulheres comuns.

Criou um herói que, para além de solucionar mistérios e de ter uma acção determinante, possui também uma biografia. É um homem maduro, vivido - sofrimento, viagens, experiência erótica e historial de luta -, que não pertence a nenhum lugar, que sabe o que é o sucesso e o falhanço. É uma personagem "humana". É o seu alter-ego?

Creio que todos os heróis ficcionais se baseiam na autobiografia dos seus criadores. Reacher partilha algumas das minhas características. Mas a melhor maneira de responder à pergunta será assim: eu faria o que Reacher faz, se tivesse a certeza que me safava sem ser apanhado. 

Desde "Do Fundo do Abismo" ("Killing Floor", 1997), o primeiro dos seus "thrillers" com Jack Reacher, até "Amanhã É Outro Dia" ("Gone Tomorrow", 2009), o seu herói parece menos motivado pela testosterona, mais avisado, mais calmo. Ao atribuir à personagem uma história que se vai desvendando tinha a intenção de desenvolver o seu herói, em termos psicológicos, de livro para livro, ao contrário de Ian Flemming, que fazia surgir o seu James Bond uma e outra vez sem nunca lhe atribuir o efeito do envelhecimento ou do amadurecimento?

Tento que Reacher não mude de livro para livro, porque acredito que os meus leitores apreciam o encontro com uma experiência previsível e de confiança. Mas é verdade que ele muda um pouco, porque eu também mudo. Envelhecemos e tornamo-nos mais calmos e mais sábios, juntos. 

Embora a maior parte dos críticos identifiquem Jack Reacher com personagens saídas da imaginação de outros autores do género, como John Le Carré e Len Deighton, será legítimo afirmar que o seu herói tem raízes mais fundas, ligadas ao mito do herói solitário, ao "cowboy", ao estranho que chega à cidade e faz o seu trabalho, partindo de seguida sem esperar pelas honras inerentes ao facto de ter conseguido - com as próprias mãos -  "limpar o lugar da escumalha"?

Absolutamente. Ele faz parte de uma tradição mítica que inclui os heróis dos "westerns". Mas tudo começou anteriormente com as histórias escandinavas da Idade das Trevas que invadiram a Europa na Idade Média e alcançaram a América no século XIX. É uma tradição de fronteira ligada a espaços vazios e perigosos. As ameaças são vencidas por um estrangeiro misterioso - o cavaleiro andante, o xogun errante, o "cowboy" - que salva tudo e todos "in extremis". 

Numa época em que todos dependem da tecnologia, por que razão criou um herói que nem um telemóvel tem?

Exactamente para enfatizar a ausência de contacto de Reacher com o mundo moderno, mantendo-o firmemente dentro dos parâmetros da tradição. 

Enquanto o seu herói é, digamos, convencional nos seus métodos, as mulheres são inteiramente contemporâneas. Não há "mulheres fatais" mas sim mulheres inteligentes, corajosas, perspicazes. Não se fazem de vítimas, não mostram sinais de fragilidade, são "sexy", atraentes e agem em conformidade com essas características. Concorda com esta análise?

Bem, adoro mulheres que sejam fortes, inteligentes e cheias de recursos e, por isso, tento retratá-las dessa forma. Talvez seja a razão pela qual Reacher se tornou tão popular entre as leitoras - ele gosta e respeita as mulheres, não toma atitudes condescendentes para com elas. 

Reacher é um ex-combatente que continua em missão. É muitas vezes afirmado que a maior desvantagem das pessoas nessa situação é terem uma família, alguém que amam e por quem são amados. A segunda maior fragilidade é terem um passado que pode ser usado contra eles. Foi por essa razão que preferiu criar uma personagem que não tem ninguém e cujo passado está envolto em mistério?

Não há dúvida que é uma vantagem para Reacher, embora a razão literária para esta característica esteja relacionada com o seu estatuto de solitário, de herói, de cavaleiro no sentido metafórico e não como um homem real. 

Pensa que essa "pureza" que o seu herói ostenta - nenhum "gadget", nenhum subterfúgio -, que se apoia na perspicácia, na força e na vantagem de um bom treino é a melhor arma de todas? 

Diz-se que a arma mais valiosa de um soldado é o seu cérebro e eu tento mostrá-lo. 

Jack Reacher pode não ser real - embora na sua página Web http://www.leechild.com seja tratado como tal, um pouco à maneira de Sherlock Holmes. Mas os perigos que enfrenta são bem reais. Neste livro trata-se de terrorismo, algo muito assustador, porque é fácil de executar. Os terroristas podem actuar em qualquer lugar, são destemidos e não têm medo de morrer. Parece defender a ideia de que para os combater é necessário utilizar tácticas de guerrilha - Jack Reacher é um Rambo largado na cidade sem recursos a não ser a sua astúcia. Acredita que só é possível combater o terrorismo utilizando as mesmas tácticas?

No mundo verdadeiro, não. Os países ocidentais são patéticos ao tornarem-se imitação de terceira categoria da antiga Alemanha de Leste nos seus esforços de combate a um problema que é estatisticamente menor. Mas os livros não são o mundo real, são fantasias escapistas onde é possível fazer uso de instintos mais violentos. 

Voltando ao livro: o herói não confia nos serviços de espionagem e informação. Os Serviços Secretos não se saem nada bem nesta história. Aquilo que surge nas notícias afecta-o? O que é que tem falhado realmente [no combate ao terrorismo]? A comunicação defeituosa entre agências? Um recrutamento mal dirigido? A promiscuidade na política? 

O maior problema reside no facto de escolherem sempre o caminho mais fácil para se safarem. Os países mais "maduros" deviam utilizar meios mais exigentes, se isso se coadunar com as suas tradições. De contrário, somos todos terroristas.

O tema principal dos seus livros está ligado a uma força que impele as personagens para um desejo de justiça e de verdade? Ou será de vingança? 

O meu tema de eleição é este: comportem-se como gente civilizada ou estão a abrir a porta a uma resposta brutal e não civilizada. 

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