O sítio selvagem de Wim Vandekeybus

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"nieuwZwart" é a peça em que Wim Vandekeybus larga a pele. Um "big bang", portanto, e vem na nossa direcção: dias 23 em Almada, 26 em Aveiro e 28 em Braga.

Wim Vandekeybus atirou pela primeira vez o corpo dos seus bailarinos para a luta (no caso dele, para a luta livre: saíram sempre de lá com vida, certo, mas sabemos lá nós em que estado) em 1987, com uma peça, "What The Body Does Not Remember", que foi um "big bang" para a dança contemporânea belga e, mesmo à distância, fez estragos no resto da Europa. As peças dele falavam uma língua estranha, suicida, e aqui a milhares de quilómetros ouvíamos o estrondo que faziam os rapazes Vandekeybus a estatelar-se violentamente no chão e no ar, uns contra os outros, e tudo aquilo parecia selvagem, brutal e perigoso ao ponto de no fim toda a gente ter corrido risco de vida, até quem estava de fora, em paragem cardio-respiratória, porque aquilo era a dança a ser mortal.

Lembramo-nos disso agora que Wim Vandekeybus decidiu fazer coisas que nunca tinha feito antes, e que essas coisas, tal como em tempos o "eurocrash", vêm na nossa direcção: "nieuwZwart", a peça que a Última Vez estreou em Maio de 2009 no Mercat de les Flors, em Barcelona, chega a Almada (Teatro Municipal) no dia 23, e segue depois para Aveiro (Teatro Aveirense, dia 26) e Braga (Theatro Circo, dia 28).

"Já não ia a Portugal há muito tempo, isto vai parecer tudo novo. E é mesmo novo. Escolhi propositadamente pessoas com quem nunca tinha trabalhado antes, e disse-lhes que só queria ver coisas que nunca tivesse visto antes. Em certo sentido, 'nieuwZwart' é uma auto-crítica: precisava de fazer outras coisas, e o espectáculo também é sobre isso. Sobre a necessidade que às vezes temos de largar a pele, sobre como o excesso nos faz parar e evoluir doutra maneira, sobre nascer e renascer", diz ao Ípsilon.

Mais um "big bang", portanto, e não é só em certo sentido. "nieuwZwart" é literalmente a criação de um mundo, mais do que a refundação de Wim Vandekeybus: "É uma peça muito alienante - é tudo tão irreconhecível que parece que fomos parar a outro planeta - e muito abstracta. Uma história da existência humana, do que acontece a partir do momento em que nascemos por causa desta nossa tendência para nos transfigurarmos continuamente", continua. Na língua dele, é isso que significa começar do zero, completamente às escuras ("Ensaiámos sempre na escuridão, com uma luz minimal", disse ao diário belga "Le Soir"), exactamente como quando chegou à dança, vindo de uma infância no campo com os animais (o pai era veterinário) e teve de criar uma linguagem "a partir do instinto, a partir de tudo o que não sabia" (e a partir dessa confiança sobre-humana que os animais têm no corpo). Vandekeybus quis começar do zero até no título: "'Nieuw' é novo em neerlandês, 'zwart' é preto. Juntei os dois termos, e é como se tivesse inventado uma palavra nova. Agrada-me que o título não seja legível, que tenha mistério. Mas é um nome como os outros: é a pessoa que faz o nome, não é o nome que faz a pessoa. A peça pode ser o que quisermos". Está definitivamente mudado: "Há dez anos ter-me-ia recusado a dizer que o meu trabalho é abstracto. Mas agora acho que somos demasiado manipuladores, que queremos impor demasiadas verdades sobre o mundo aos espectadores. Não era isso que me apetecia fazer agora", contou ao "Le Soir".

Como um acidente

O que lhe apetecia fazer agora era olhar para o "espaço em branco" entre o nascimento e a morte, e para a maneira como tentamos desesperadamente sobreviver e, tendo tempo para, dar um sentido a isso. É uma luta, e a luta continua em "nieuwZwart", que começa com o fim de qualquer coisa, o céu em cima da cabeça de sete miúdos e o mundo a tentar recompor-se (como eles, imaginamos, tentam recompor-se no fim de cada apresentação: Vandekeybus quis fazer "outras coisas" mas continua a abusar fisicamente de quem aceita ir com ele para todo o lado). A criação do mundo sai-nos do corpo, argumenta: "Renascer para mim é um choque, uma coisa que vem das entranhas: é como quando caímos, como quando temos um acidente". Tudo o que vem a seguir ao choque é novo, e nisso "nieuwZwart" é um segundo "What The Body Does Not Remember": "As pessoas dizem que esta peça tem alguma coisa do princípio, e tem. No princípio eu também era um coreógrafo muito abstracto, e também andava à procura de corpos que sobrevivessem a tudo", diz-nos.

Os sete corpos que procurou especificamente para pôr em "nieuwZwart" também vêm de outro planeta: "Com a peça anterior, 'Spiegel', foi como se tivéssemos chegado ao fim de qualquer coisa. Alguns bailarinos da Última Vez tinham vontade de parar para fazer outras coisas, outros tiveram filhos, e foi quase natural eu ir à procura de outras pessoas. Os bailarinos com quem estou habituado a trabalhar conhecem-me demasiado bem, sabem demasiado bem o que querem fazer e o que não querem fazer. Tinha vontade de montar uma equipa nova, com pessoas que não me conhecessem, não me percebessem, não interpretassem as minhas instruções em função do que fizemos juntos antes - pessoas a quem fosse preciso explicar tudo outra vez". Foi mesmo preciso: a nova geração de bailarinos, nota Vandekeybus, "é mais individualista, mais egocêntrica e menos comunicativa do que as anteriores", e percebe-se que "esses miúdos perderam uma grande parte da história da dança". Tem as suas desvantagens - "É mais difícil conseguir que se comportem como um grupo no estúdio, onde eu detesto que as pessoas permaneçam completamente sozinhas. Mas os músicos são mais velhos, e quando chegaram impôs-se uma comunicação que eles tiveram de respeitar" - mas também tem as suas vantagens. Se estivermos com atenção, "percebemos que eles afinal têm histórias para contar": a maneira como se movimentam ainda não foi sequer inventada, e nisso até Wim Vandekeybus está de boca aberta (também era o espírito).

Como noutras criações do coreógrafo para a Última Vez, há um texto do flamengo Peter Verhelst (que "está lá mas não é para ser compreendido integralmente", até porque não foi ponto de partida para "nieuwZwart", antes ponto de chegada), e há uma banda sonora impositiva. Depois de David Byrne ("In Spite of Wishing and Wanting", 1999), Marc Ribot ("Inasmuch As Life Is Borrowed...", 2000) e David Eugene Edwards ("Blush", 2003), Vandekeybus quis que Mauro Pawlowski, dos dEUS, estivesse por perto. "Conhecemo-nos há imensos anos, ele faz muitas performances e gravações em lugares não convencionais, coisas muito estranhas que é quase impossível encontrar em disco. Até por isso achei que a banda sonora desta peça devia ser ao vivo: é uma maneira de nunca sabermos exactamente como vai ser. A música manipula os bailarinos, é uma coisa muito física. Há uma energia incrível que se cria ali, e que nos explode na cara".

Vídeo não há, não havia espaço. É uma coisa que ele continua a querer fazer quase mais do que a dança - e que está a fazer neste preciso momento para a próxima criação, que tem estreia em Setembro, e para uma longa-metragem a sério, agendada para 2012 - mas agora não. Agora queria fazer coisas selvagens, queria animais de palco. "Eu e o Mauro sempre conversámos muito sobre rituais, sobre essas coisas que já ninguém faz, como saltar fogueiras no fim da Primavera. É isso que estamos a fazer agora, juntos: a saltar fogueiras". Apostamos que não vai haver queimaduras de segundo grau: sempre soubemos que este rapaz, Wim Vandekeybus, ia sobreviver a tudo. Até a ele próprio.

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