Morreu Hermínia, única herdeira dascantadeiras de mornas do século XIX

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David Clifford/PÚBLICO

Não conheceu a ribalta como a sua prima Cesária, mas pelo menos um disco seu ficará na lista das melhores gravações cabo-verdianas de sempre. Hermínia morreu domingo, na ilha do Sal

Podia ter ficado como diva de um só disco. Mas gravou dois, embora o segundo já de regresso à obscuridade. A cantora cabo-verdiana Hermínia da Cruz Fortes, conhecida por Hermínia d"Antónia de Sal, morreu no domingo, na ilha do Sal onde quase sempre viveu.

Os dados das notícias variam na hora (à tarde, à noite), como variam na idade: 72 anos ou 67, a crer na biografia oficial, que a dava como nascida em 1942. Mas isso é o menos importante. A voz, sim, era o seu tesouro. Uma voz "aguda e carregada de vibrato" num corpo franzino e frágil, como a descreveu Fernando Magalhães em Fevereiro de 1999, no PÚBLICO, depois de assistir ao seu concerto no Centro Cultural de Belém (CCB). Ou uma mulher de idade "que canta com a alma radiosa de uma adolescente", como se lhe referiu Luís Maio, ao distinguir, em 1998, Coraçon Leve com 9 estrelas em 10.

E esses foram os seus tempos de glória. Antes, há leves traços da sua biografia. Nascida na ilha de São Vicente, prima de Cesária Évora, Hermínia aprendeu a cantar com a mãe, que também tocava viola e cavaquinho. Mas a mãe morreu cedo e, aos 11 anos, ela foi viver com uma tia na ilha do Sal. Aos 33 anos gravou a primeira morna, para a rádio. E isso valeu-lhe vários convites para cantar em restaurantes e hotéis. Numa delas, estava na plateia Gilbert Castro, dono da Melodie francesa, acompanhado do músico e compositor cabo-verdiano Vasco Martins. Este, recorda agora essa noite via telefone, a partir do Mindelo. "Assistimos, juntos, à primeira parte de um concerto da Cesária onde actuou a Hermínia e o Gilbert disse-me que estávamos na presença de uma senhora com uma voz singular e admirável." O adjectivo é sublinhado por Vasco Martins: "Uma voz singular, ou se gosta ou não se gosta. Eu gosto." Esse gosto deu um disco, aplaudido pela crítica de forma unânime: Coraçon Leve. Uma ironia: era um projecto feito ao longo de anos a pensar em Cesária, na voz dela. Cesária não quis. E Hermínia ganhou-o.

Voz "extraordinária"

"Estivemos a ensaiar oito meses antes de ir para estúdio", recorda Vasco Martins. Em 1998, quando o disco saiu, gabava a voz de Hermínia como "extraordinária": "Dá-me a impressão que são 500 anos da história de Cabo Verde que cabem na voz dessa mulher." Agora, passados 12 anos, continua a lembrá-la como a "única continuadora das cantadeiras de mornas do século XIX". Coraçon Leve, o disco, tinha sobretudo mornas mas nunca ninguém as ouvira assim. Composições e desempenho, escreveu Luís Maio, promoviam nele a morna "a um novo patamar de profundidade". Uma luz cujo brilho, em palco (como Lisboa teve oportunidade de ver em 1998/9, primeiro no Maria Matos e depois no CCB), diminuía devido à fragilidade da imagem da cantora.

"Numa pequena casa"

Coraçon Leve, com todas as composições a cargo de Vasco Martins e arranjos com Voginha, teve um único sucessor: Do Sal, editado pela Celluloid em Maio de 2006. Era um disco com temas antigos, como Antonim Marta, Caminho de dja brava, Nho Mané Valentim, Bia ou Angola, que a voz de Cesária celebrizou. E não teve o mesmo eco do primeiro, que a levou a correr vários palcos do mundo. Quando Vasco Martins a levou à fama, Hermínia morava "numa pequena casa branca com um quarto só, isolada na montanha". A doença, alimentada a tabaco e álcool, venceu-a por fim. Mas a sua voz brilha ainda, como poucas, em dois discos que a história não ignorará.

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