A poesia voltou às ruas

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Nos anos 1970, falando ao povo, sendo o povo, Gil Scott-Heron tornou-se voz da consciência negra. A sua poesia fundiu-se em música, a sua luta manteve-se inalterada: "tornar a América a democracia e a sociedade multirracial que sempre se vangloriou ao mundo de ser".

Há algumas semanas, o inefável Kanye West, mestre da comunicação moderna sempre activo na internet e, com menos mestria, em galas de prémios, anunciou no seu blog estar a gravar nova música e informou que ela representará um afastamento do rap. Quer ser agora um verdadeiro poeta. Escreveu: "É curioso como tantos rappers pioram à medida que as suas carreiras avançam, mas os verdadeiros poetas melhoram. Vamos seguir as pisadas de Maya Angelou, Gil Scott-Heron e Nina Simone".

Depois, uma frase e todo um programa. "Vamos olhar além dos cabeçalhos e lidar com um pouco de realidade nesta nova década".
Kanye West, estrela maior do hip hop, escreveu que se quer afastar do rap, que quer ser um verdadeiro poeta. Mais: que é tempo de lidar com um pouco de realidade. Um dos nomes que citou como exemplo a seguir é Gil Scott-Heron, nome maior da música negra, poeta activista, o homem que foi a CNN da comunidade afro-americana antes de existir a CNN e antes de existirem os Public Enemy. Scott-Heron que é considerado o "padrinho do hip hop". Ou, como escreveu o Times em 2004, "o hip hop é a concretização das suas próprias ambições".

Depois de um longo silêncio, entre duas passagens pela prisão por posse de cocaína, Gil Scott-Heron, 60 anos, está de volta. Cresceu activamente envolvido na luta pelos direitos civis dos afro-americanos e encontra Obama na Presidência. Passou uma vida a reclamar da falta de visibilidade dos músicos e artistas da sua comunidade, preteridos em favor de versões "brancas", e tem agora Jay-Z, Kanye West ou Will Smith como estrelas maiores dos EUA. Ainda assim, o título do seu novo álbum é "I'm New Here". Ainda assim, Kanye West diz que é preciso olhar para trás, descer à terra e recomeçar novamente.

"Se vais falar ao povo, tens de ser o povo. Quer gostem quer não, os rappers representam a nossa comunidade. Podem fazer algumas mudanças se foram corajosos o suficiente". A frase é de Gil Scott-Heron, ano 2004. Trocando rappers por poetas, escritores, músicos, podia tê-la proferido em qualquer outro período da sua vida. Foi assim, falando ao povo, sendo o povo, que encontrou a sua voz. Foi isso, a capacidade de ser "estadista veterano e o homem da rua ao mesmo tempo", como o definiu Mos Def, que o ergueu a voz da consciência negra e a catalisador de mudança, destacando-se num período de convulsão social e fervor revolucionário como o foi a década de 1970 nos EUA.

Stand up, sem a comedy

Gil Scott-Heron nasceu em Chicago, Illinois, e viveu em Jackson, Tennessee, antes de chegar a Nova Iorque, com 13 anos. Levava com ele o blues que ouvira na infância. A música de John Lee Hooker, BB King ou Muddy Waters era a sua música, era música que não encontrava na Big Apple.

Nos anos 1970 e 1980, nos interlúdios que pontuavam os seus concertos, que eram pedagogia e experiência de vida, que eram "stand up" sem a "comedy", costumava contar como, depois de muito andar pelo Bronx à procura de blues, o acabou por descobrir. "Onde posso encontrar o blues? Não o ouço na rádio", perguntava nas ruas. "O blues?", respondiam-lhe.

"Não é preciso procurá-lo. Basta ficares onde estás. O blues vem ter contigo". Scott-Heron não ficou à espera, procurou-o e reflectiu-o.
Em 1970, foi autor celebrado, com a edição do primeiro romance "The Vulture". Isso, contudo, não servia aquilo que pretendia. Martin Luther King morrera e a luta extremara-se. Os Black Panthers planeavam a revolução, o Black Arts Movement promovia a consciencialização para a necessidade de uma revolução, James Brown gritava "I'm black and I'm proud" e a vanguarda jazz de Archie Shepp ou do Art Ensemble Of Chicago firmavam nova identidade, traduzindo uma redescoberta da cultura africana nas ruas americanas. Gil Scott-Heron, poeta e escritor, sentia que agir era uma obrigação. Agir realmente. "Porque necessitaríamos nós de um poeta que torne as coisas mais complexas?", questiona no documentário "Black Wax", realizado em 1982 por Robert Mugge. "As pessoas já não lêem romances como acontecia antes, mas compram discos. Essa é a razão pela qual me virei para a música", explicou em Agosto de 1975, em entrevista ao "New Musical Express".

Tudo aquilo que seria o seu percurso ficou firmado no primeiro passo: "Small Talk at 125th and Lenox", álbum editado em 1970. "Spoken word" acompanhado de percussão, à semelhança dos contemporâneos Last Poets (também eles considerados precursores do hip hop), mas ao contrário destes, com uma pinceladas de humor cáustico a estimular a proximidade entre autor e ouvinte. No texto de apresentação, escrevia: "Sou um homem negro devotado à expressividade. A expressividade é a alegria e o orgulho da Negritude". Elencava as suas referências: John Coltrane, Otis Redding, Billie Holiday, Malcolm X, o poeta Langston Hughes ou o pianista Brian Jackson, que se tornaria inseparável parceiro musical na década e meia seguinte.

Em Nova Iorque, todos conheciam o cruzamento a que o título do álbum fazia referência, todos sorriam quando Heron rematava "Whitey on the moon" com o envio das contas por pagar dos "brothers" ao astronauta "branquelas". E todos os "brothers", em Nova Iorque ou fora dela, num momento em que os motins explodiam em várias cidades americanas e em que a sociedade da informação (e da contra-informação, acrescentaria Scott-Heron) se começava a estabelecer, sentiam a agora imortal "The revolution will not be televised" como empolgante cristalização do "zeitgeist". Para Gil Scott-Heron, tudo começava aqui e, a partir daqui, não havia forma de voltar atrás: "The revolution will not go better with Coke / The revolution will not fight the germs that may cause bad breath / The revolution will put you in the driver's seat / The revolution will not be televised / Will not be televised / The revolution will be no re-run brothers / The revolution will be live".

As ruas que o poeta percorre

O supracitado "Black Wax" acompanha Gil Scott-Heron em Washington, a cidade onde vivia na altura. Em palco, vemos um veterano imponente, magro e altíssimo, com o primeiros tons grisalhos a manchar-lhe o cabelo. Vemo-lo cantar a melancólica "Winter in America", canção título de um dos seus melhores álbuns, editado em 1975, e ouvimo-lo definir-se como um "bluesologist", ou seja, alguém que transformou o espírito do blues, a música afro-americana por excelência, em manifestação criativa abarcando todos os domínios. Ouvimo-lo passar por "Johannesburg", hino anti-colonialista em balanço reggae, e a disparar "B Movie", a sua frente armada de oposição a Ronald Reagan (na canção este é Ronald Ray Gun, o homem providencial que os americanos arranjaram quando perceberam que John Wayne não estava disponível). Já não é "spoken word" aquilo que ouvimos. A música de Gil Scott-Heron já não o era há muito.

Após a edição do primeiro álbum, iniciara uma colaboração com o pianista e flautista Brian Jackson que transformou a sua poesia numa arte integrada, espaço onde confluíam todas as manifestações musicais afro-americanas: o jazz, o funk, a soul, o blues. Em 1982, no concerto em Washington que "Black Wax" capta, a sua música era tão física e imediata quanto exigente e Scott-Heron figura reverenciada pelo público que assistia. Conheciam-lhe "The bottle" e "Home is where the hatred is", retratos sociais e alerta à comunidade (activismo compassivo como o de Curtis Mayfield). Conheciam-lhe "Lady Day and John Coltrane", homenagem às figuras que servirão sempre de refúgio seguro. Ali em palco, Scott-Heron era uma estrela, talvez maior que o seu desejo de ser, ainda, parte de uma luta contínua, interminável. Ao "New Musical Express", em 1975: "Gostaria de fazer a América viver de acordo com toda a sua publicidade, de forma a tornar-se a democracia e a sociedade multiracial que sempre se vangloriou ao mundo de ser".

Em "Black Wax", vemo-lo também fora do palco, passeando pelas ruas de Washington, mostrando a cidade que os turistas não vêem, a capital que o país não reconhece.

Boné sobre a cabeça, andar gingão, "tijolo" ao ombro debitando uma batida e Gil Scott-Heron "rappando" sobre ela. Passa por um parque onde velhos estão sentados e novos descansam do exercício físico. Caminha sobre os passeios do bairro enquanto os miúdos o ouvem e observam.

Observam Gil Scott-Heron, "estadista veterano e o homem da rua ao mesmo tempo". A sua música mudara, adaptara-se ao seu contexto, contornando o "disco" pela esquerda ou incorporando outros sons para afirmar nela uma visão global. Gil Scott-Heron, ele mesmo, aquilo que representava, não mudara.

Alguns anos depois, a dependência da cocaína transforma-o, tragicamente, em personagem de uma das suas próprias canções - de "The bottle", de "Home is where the hatred is". Em 1994, quando editou o seu penúltimo álbum, era idolatrado pela comunidade hip hop que o via como referência. Os elogios não detiveram a voz da consciência. "Message to the messengers" foi o seu recado.

Dezasseis anos depois, está de volta. O álbum que lançou pode ser o mais introspectivo da sua carreira mas Heron continua a sua luta. Está todo em "I'm New Here" e nele espelham-se todas as ruas que o poeta percorreu.

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