Victor aprendeu a ser cego aos 22 anos

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Victor a corre no ginásio durante uma prova de orientação Daniel Rocha

Houve um tempo em que mesmo a dormir todas as imagens eram nítidas, estavam pintadas de dezenas de tonalidades e as formas tinham linhas bem definidas que se foram esbatendo, devagar, até ficarem difusas.

Foi por volta dos 15 anos que os contornos dos sonhos de Victor Branco mais perderam definição e a paleta de cores se reduziu, passou quase só a claros e escuros. Nessa altura, apresentaram-lhe um termo que o passou a catalogar: ambliope, aquele que sofre de baixa visão.

Nos sonhos, Victor ainda luta contra a perda de visão, tentando controlá-los e impondo o mundo tal qual ele era, quando via tudo. "Eu tento ver melhor nos sonhos mas não consigo. Sonho o que vejo. Os sonhos adaptam-se à realidade."

Tem 22 anos e restam-lhe pouco mais do que o amarelo, o verde, o branco sobre o preto, desde que muito contrastados, sombras e formas turvas: mantém oito por cento de visão, há um ano via 14 por cento. Sofre de miopia com atrofia da retina.

Há quatro meses, saiu pela primeira vez da ilha açoriana de São Miguel em direcção à desconhecida Lisboa para aprender a ser cego, se for preciso. "Sempre tive medo de sair do ninho, desta vez senti obrigação de o fazer e vim sem pensar duas vezes", contou, pouco depois de ter chegado.

Chegou a ser bom aluno, mas por ver tão mal há dois anos que não lia nem escrevia. "Entrei em desmotivação total. Deixei de me levantar para ir à escola." A sua professora de ensino especial reparou e lembrou-se de um sítio, um centro público de reabilitação em Lisboa, o único em Portugal, onde podia reaprender a viver, de forma diferente.

Tinha conhecido apenas um cego em São Miguel, um homem mais velho, e o seu conhecimento do universo dos invisuais ficava-se por aí. Vivia num mundo impartilhável onde, sem nunca ninguém o ensinar, foi criando os seus truques, sobretudo para não repararem na sua baixa visão.

Na Lisboa que veio conhecer, é como se o mundo estivesse invertido: aterrou num meio de invisuais e ambliopes em que o desafio é aprender a gerir a vida como eles, em que vê, apesar de tudo, melhor do que muitos deles.

Percebeu que para assimilar melhor há vezes em que tem de fingir que já é cego sem o ser, não sabe muito bem porquê. Porque é preciso colocar-se no lugar dos outros? Porque aquele pode vir a ser o seu destino?

Há aulas de Actividade Motora em que vimos Victor a treinar o equilíbrio e a marcha em linha recta, em cima de um estreito banco de madeira corrido, com uma venda vermelha completamente opaca nos olhos; para jogar o desporto goalball, a venda é negra, é obrigatória e o objectivo é aprender a marcar golos com uma bola esburacada que emite o som de guizos; para se concentrar no tactear dos pontos salientes de uma página em Braille, Victor às vezes fecha os olhos.

Saía com o dinheiro contado

Nos Açores, o seu mundo foi encolhendo, mas na sua terra, Vila Franca do Campo, mantinha alguma autonomia. Em casa eram a mãe e as irmãs que lhe deixavam a comida pronta, com medo que se queimasse, saía de casa com o dinheiro contado para se proteger de enganos, mas na rua não precisava de ninguém para chegar a lado nenhum.


"Lá, ia para todo o lado sozinho." Os caminhos eram conhecidos, as estradas simples de atravessar - "de um ponto ao outro" -, "lá é calminho, ouve-se os passarinhos" e sabe-se bem de onde vêm os carros na estrada. Transportes quase só há um, é a camioneta que vai para Ponta Delgada. Lá, as pessoas conhecem-no e ele conhece toda a gente, o que não é necessariamente bom.

De resto, tudo o que tornava Victor diferente entre os da sua idade foi disfarçado. Na escola nunca tomava refeições para que não reparassem que não via a comida que tinha no prato e que não a conseguia cortar, ficava-se pelos bolos que se agarram com uma mão e se trincam aos pedaços.

Para não destoar, nas aulas foi-se deixando ficar para trás: recusava-se a usar lupa para ler, a levar o computador para aumentar as letras, disse que não a apontamentos ampliados e a gravar o que diziam os professores. A única cedência foi sentar-se na primeira fila desde cedo, embora seja mais aluno de última fila, a escolhida pelos que gostam de conversar.

Victor foi mudando de atitude ao longo do seu percurso. Em plena adolescência, quando perdeu grande parte da visão, houve uma altura em, para sua autodefesa, encarnou "o brigão", que reage à letra a cada gozo, a cada "o Victor é cegueta". "Era mais para criar a fama do "se alguém se mete comigo leva"." Nas aulas, optou por ser o "palhaço da turma". "Sempre a rir e a fazer pouco. Era a minha protecção, o palhaço nunca é o coitadinho".

Se de um rapaz adolescente de 16 anos se pede que seja radical, não poderia ser por ver mal que Victor não iria sê-lo, tanto como o grupo de amigos. Ou, se possível, mais: fez escalada, rapel, canoagem. "Muitos tinham medo e eu mesmo a ver mal atirava-me. Era uma forma de me libertar", sorri quando se lembra, calçado com ténis de marca e brinco na orelha esquerda.

"Mudei a visão dos meus amigos, que não tinham de mim a visão do coitadinho. Eles até se esqueciam que eu via mal." E Victor estava a sempre a relembrá-los.

Até que um dia podia ter morrido. A memória é contada em tom de aventura. Estava com um grupo de amigos a fazer downhill, em cima de uma bicicleta a descer um trilho de terra em grande velocidade, "o caminho fininho, recto, com umas ervinhas". Caiu para um dos lados e aterrou dentro de um tanque de rega de onde os amigos o foram tirar, 15 minutos depois de terem ficado à espera dele mais adiante. No outro lado, se lá tivesse caído, estava "um abismo de 100 metros. Podia ter morrido", desvaloriza. "Quando me tiraram do tanque, até bateram palmas."

Pessoas novas, novos barulhos

Mesmo antes de vir para Lisboa, já tinha vindo a criar as suas "técnicas de sobrevivência", para se adaptar à baixa visão. "O nosso corpo faz coisas para se adaptar, junta-se umas com as outras." Algumas surgem "sem pensar, automaticamente, por instinto". Objectos: se ele veio daquele canto da sala e ali estava uma secretária, então a forma branca no seu tampo deve ser uma folha de papel. "Deduzo."


Pessoas: Passou a conhecê-las de conviver com elas, pela forma de andar, pelo peso que põem na passada, pela largura do passo. As mulheres perfumadas facilitam a tarefa do reconhecimento e os tons da indumentária do dia ficam logo gravados ao primeiro avistamento, para quando volta a encontrar a pessoa saber de quem se trata. "E, claro, o essencial é a voz."

Mas há outras estratégias que não são automáticas, é preciso aprendê-las. Quando percebeu que já não conseguia ler as letras do teclado do computador, começou a colar-lhe letras de papel que ampliava e imprimia no Word. Quando isso deixou de funcionar, porque se descolavam e passaram a ser muito pequenas, percebeu que a única solução era memorizar. "Sei o teclado de cor há seis anos." O segredo são o J, F e o 7 que servem de chave-mestra para as restantes letras e números.

Foi esta aprendizagem que trouxe de avanço para Lisboa, onde chegou há cerca de quatro meses. Tudo o mais é um mundo novo desde que partiu da ilha para aterrar pela primeira vez no continente.

O desconhecido da cidade começou logo pelos barulhos novos - "o metro, comboio, carros. Confunde-se tudo" - e os obstáculos. "Os caminhos, a forma de os objectos estarem no caminho, é um mundo todo novo. É muito estranho haver um passeio a meio de uma estrada." Porque é que põem coisas no meio do caminho? Caixas da água, uns pinos de ferro, desníveis no solo, buracos. "Lá não há buracos no chão." Em São Miguel, há menos sítios para onde ir, mas é mais fácil chegar a eles, cá há tantos destinos mas é muito mais difícil lá chegar.

Mas o que Victor mais gostou desta cidade nova foi mesmo das pessoas na rua. "Cá as pessoas são mais frias" - não parecendo, a frase é elogiosa - "e isso é bom." O serem indiferentes e apressadas faz com que não liguem ao que os rodeia, que não olhem, não teçam comentários, não olhem e não pensem aquilo que ele pensa que eles pensam dele: "Lá vai o cego, o coitadinho. Isso destrói a pessoa, derruba-a." Descobriu que é possível ser-se ambliope e invisível ao mesmo tempo.

O que é o vermelho?

No Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, que é desde então uma espécie de casa, entra sobretudo quem precisa de aprender a ficar cego não tendo nascido como tal. E a diferenças entre duas pessoas - cegos congénitos e cegos recentes - que a quem está de fora podem parecer iguais, porque ambas não vêem, são muitas.


Como se explica a um cego de nascença o que é o vermelho? Como se diz para seguir em frente se ele nunca viu uma linha recta?

Conceição Luís, directora do único centro público no país vocacionado para a reabilitação de invisuais, apercebeu-se de que um aluno com cegueira congénita imaginava "a Torre de Belém cilíndrica", à semelhança da torre de xadrez que sentia com as mãos. "Os cegos recentes sabem como é a Torre de Belém, viram-na no ano passado", as associações são feitas com a memória visual que tem armazenada.

Mas no que se trata de aquisição de competências "os cegos recentes nunca serão tão "bons cegos" como os congénitos". Os segundos "reconhecem pela direcção do som se alguém lhes está a dirigir a palavra", nota a responsável. "Há pessoas aqui que reconhecem pessoas pelo cheiro", junta Victor.

É o caso de Ana Patrícia Santos, uma das professoras de Victor, que tem a sua idade. Nasceu cega e reconhece que "há sentimentos que eles [cegos recentes] têm em relação à cegueira que eu nunca tive, eu nunca tive de fazer luto da perda de visão. Eu nunca perdi nada, eu nunca senti "tenho uma vida desgraçada"". É por causa das diferenças que sente em relação a si que os vê como "os mais desafiantes de ensinar". Mas há limitações no ensino destes recém-invisuais: na cegueira adquirida, as pessoas "ganham as competências possíveis", explica Conceição Luís, cada pessoa com o seu ritmo e as suas disciplinas.

Cada quadrícula do horário de Victor, que está pendurado na parede, é como se representasse uma janela para uma linguagem nova que Ana Patrícia conhece desde sempre mas que Victor tem que aprender, uma forma de fazer algo de maneira diferente. Orientação e Mobilidade à segunda e terça, Artesanato, para desenvolver a sensibilidade na ponta dos dedos, à quarta e quinta, entre outras.

Em Tecnologias de Informação e Comunicação, a mais familiar das disciplinas para Victor, o desafio é usar o computador deixando de ver e isso significa desligar o monitor e pôr o rato de lado. E é isso que faz a professora Ana Patrícia.

Aqui, Victor tem de usar o lugar das teclas que trouxe na memória e passar a ouvir o ecrã em vez de o ler e isso significa que tudo é dito, numa voz que soa a máquina e não a pessoa, desde as "aspas duplas" ao "em branco, em branco, em branco", tecla Victor como se fosse um disc-jokey a fazer riscar um disco, "em branco, em branco, em branco". "Adoro fazer isto."

No novo mundo de Victor, há sons novos. O computador e o telemóvel de Ana Patrícia falam com voz de sintetizador em sotaque brasileiro e o relógio de pulso do professor de Braille dá as horas em voz espanhola.

Em vez das simples 26 letras do alfabeto que lhe são familiares na aula de Braille, tem agora para aprender 63 símbolos, uma amálgama de combinações de seis pontos organizados em sucessivos quadrados invisíveis no papel. A tinta das letras é substituída por saliências que se fazem com um objecto que parece uma máquina de escrever e que se calcam com os dedos quando se querem apagar. Só que Victor ainda consegue ver que as páginas estão em branco e é por isso que fecha os olhos, para se concentrar num mundo que tem de assimilar, porque pode vir a ser o seu.

Um prato é um relógio

E até para comer há algo a descobrir. Um prato deixou de ser um prato para passar a ser um relógio em que as várias localizações da comida têm hora certa: Hoje ao almoço alguém lhe disse que a costeleta de porco está às seis da tarde e o arroz ao meio-dia. E, truque, que parece tão simples mas que também aprendeu, basta usar o indicador para sentir se o copo está cheio. Até ali ou o enchia até transbordar ou não arriscava e ia até a uma metade calculada.


Parecem detalhes comezinhos, mas tudo contribui para o mesmo. "O objectivo é integrarmo-nos na sociedade e esses pequenos pormenores contam. Não fica bem estarmos a sentir a comida com a mão."

Sair dos Açores foi também viver fora de casa pela primeira vez. Victor deixou de sair com o dinheiro contado. Agora reconhece as moedas pelas suas ranhuras, que são finas e largas, diferentes mesmo para serem reconhecidas pelos invisuais, e a medir o tamanho das notas dobrando-as e entalando-as entre os dedos, que servem de régua: uma de cinco euros é maior do que uma de dez e uma de dez é maior do que uma de 20, numa escadinha crescente em que só repara quem precisa.

Outra estreia: usou o multibanco pela primeira vez. No corredor do centro está instalada uma réplica do aparelho que debita notas de faz-de-conta para treinarem sem a pressão dos que estão à espera. O segredo é irem directos à tecla 5, onde está uma saliência, o ponto de referência, depois pôr o código, e é também o número 5 que permite pôr a máquina a falar. Alguns multibancos, há que saber escolhê-los, têm lugar para auscultadores, para que ninguém escute os valores de saldos e levantamentos em voz alta. "Há muitas máquinas que não falam, decoramos as que falam", diz Ana Patrícia.

Mas isso é na escola. Victor passa os fins-de-semana numa residência para invisuais e ambliopes e aqui a aprendizagem fez-se de outra forma, os seus professores informais foram amigos que foi ganhando. Pouco depois de ter chegado, foi pela primeira vez a um karaoke com invisuais e logo foram cantar. Mas como é que seguem a letra sem ver o ecrã?

"Nós somos espertos, não brincamos em serviço. Escolhemos uma canção que toda a gente sabe." E ninguém percebeu. "As pessoas começavam a cantar e nós íamos atrás." Escolheram Mentira, do José Pedro Pais: "Dá-me vontade de te ter ao meu lado... Vendo-te a olhar para mim... Porque é que a vida nos trama?... Tenho saudades de te ver... Porque é que a vida nos fascina?... Mas é mentira! Mentira! Mentira!"

Há actividades que, parecendo depender apenas da visão, não deixam de se fazer, como ir a um jogo de futebol. Foi a sua primeira vez no estádio da Luz, ficaram no terceiro anel e ele conseguiu ver-lhe os contornos. "Há sete ou oito anos, via os jogos perfeitamente", agora estava limitado a "uns pontinhos" da equipa adversária a movimentarem-se no relvado, isto porque vestiam equipamentos claros que contrastavam com o verde; já dos jogadores da sua equipa, o Benfica, de vermelho, nada via.

Faz sentido ir ver coisas

Mas não é por isso que deixa de dizer: "Faz sempre sentido ir às coisas. Não é preciso ver para ir ao futebol, há o ambiente em volta. As pessoas gritavam muito, por isso é que é bonito. As claques... Gosto muito de futebol." O colorido era dado pelo relato de rádio que tinha encostado ao ouvido.


Habituado a praticar desporto, foi-lhe apresentado o goalball. É possível continuar a jogar futebol, uma espécie de futebol em que todos usam venda por uma questão de igualdade, porque os jogadores com vestígios de visão, como Victor, teriam vantagem face a alguns colegas.

Os amigos também lhe ensinaram o que já foram aprendendo há mais tempo, que nem sempre podem contar com ajuda dos outros. Um deles contou que lhe partiram a bengala e "o deixaram na rua, assim, no vácuo".

A professora de Orientação e Mobilidade incentiva Victor a pedir ajuda para andar nos transportes públicos, mas ele insiste em ser autónomo e criar a sua colecção de pontos de referência: dentro do autocarro vislumbra formas que adivinha serem copas de árvores a abanar, caixotes de lixo pretos ao pé das paragens e tenta memorizar as curvas até ao seu destino, porque contar as paragens não é produtivo, às vezes o autocarro não para em todas.

Todas as aprendizagens se fizeram rapidamente, elogiam os professores. Mas foi na aula de Orientação que Victor sentiu o que nunca sentiu, não pela dificuldade em assimilar, mas pelo objecto que não consegue, não quer usar.

A primeira vez que nessa aula lhe colocaram à frente uma bengala metálica de cego quase chorou à frente da professora. "Foi no quarto, foi lá que chorei. Eu não me sinto ceguinho, desgraçadinho. Um dia pensei que tinha de saber Braille, mas nunca pensei, um dia tenho de usar bengala."

Não é que seja difícil de usar, é todo o simbolismo que o objecto articulado que se monta de um movimento implica. "Há dois tipos de cego: o cego pedinte e o que luta e tenta ser autónomo."

Para Victor, a bengala carrega toda a imagem social do tipo que ainda prevalece - do cego coitadinho que pede esmola no metro, que denigre a imagem "do que todos os outros fazem e não se nota", ainda por cima "muitos andam a pedir e nem sequer são cegos".

Três meses depois desse primeiro embate, Cláudia Ferreira, a professora de Orientação, pergunta-lhe no início da aula se tem a bengala com ele. Victor responde que está arrumada e ela pede-lhe para a retirar para fora. De jeans descaídos e cigarro na mão, há um silêncio que quer significar recusa.

Não consegue ler os rostos das pessoas quando entra no autocarro - "Victor fecha a bengala só quando estiveres sentado", admoesta a professora quando entram no veículo - mas até na anónima cidade não se consegue abstrair dos olhares que não vê mas que adivinha serem de comiseração, assinalando a sua entrada.

É de tal forma o seu "desprezo" pelo objecto que o percurso que hoje aprendeu com a professora vai ser ignorado três meses mais à frente. Para ir até à residência onde passa o fim-de-semana, teria de apanhar dois autocarros, o 6 e o 28 e depois o comboio no Cais do Sodré e, como não vê os números, a bengala é o único sinal identificativo para os motoristas. Quando a vêem, receberam instruções para parar e dizer alto o número do veículo e o destino, como hoje: "vinte e oito".

Ele fez o percurso de acordo com o aprendido, algumas vezes. Mal acabaram as aulas de Orientação, Victor optou por um itinerário alternativo que não o obriga a usar bengala e assim não deixa que ela o marque. Faz um percurso mais longo a pé e depois apanha dois metros. "É mais prático...", explica primeiro, "e assim não tenho de usar bengala", completa.

Sabia que aprender a andar em Lisboa era a máxima prova. "Se eu me conseguir orientar aqui, consigo orientar-me em qualquer sítio", dizia quando chegou, não se sabia era que seria a orientar-se à sua maneira.

Muito mudou. No centro de reabilitação aponta para o chão: "Esses dois degraus que estão aí, no primeiro dia caí", diz, quatro meses passados. Lembra-se que num dos primeiros fins-de-semana fez três galos: um de ir contra uma porta do frigorífico, outro contra a porta da sala de convívio e o último contra a caixa incêndios. Não os guardou para eles e contou-o aos colegas, como eles fazem. Aprendeu que é possível fazer humor com "o problema". "Foste tu que apagaste a luz?", perguntou um colega invisual. "Fogo, sou mesmo cegueta. Não vejo nada", disse um amigo a olhar para o ecrã. Em dias bons, "gozamos".

Aprender o que aprendeu é a parte que depende de Victor. A meta seguinte é voltar aos Açores e terminar o secundário onde o deixou, no 11.º ano, a seguir ir para faculdade para tirar um curso superior de Reabilitação ou Psicologia, talvez de novo em Lisboa. Dois dos seus amigos ambliopes estão a tirar cursos de massagistas, duas das poucas saídas profissionais para invisuais, diz.

Mas na sua escola informal de fim-de-semana percebeu que na parte de arranjar emprego "o Estado põe no papel o que é preciso para ajudar as pessoas, mas não é posto em prática". "Cada um de nós tem de dar uma lição às outras pessoas, não quero ser apenas mais um." Mas há coisas que "não dependem de mim, é mesmo assim". Como se vai ficar cego ou não e quando.

Victor convive todos os dias com essa ambiguidade. Um médico disse-lhe que o mais certo é vir a piorar progressivamente até cegar, não se sabe quando; outro que provavelmente não iria ficar pior do que está. Saberá em sonhos.

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