Sam Peckinpah, o último romântico

Foto
Sam Peckinpah

Violento, misógino, fascista? O último dos românticos, "maior do que John Ford", diz David Weddle, o biógrafo de Sam Peckinpah. Desde sexta-feira na Cinemateca, Lisboa

"Peckinpah!": não soa a disparo a ecoar na pradaria? Juntem-se os óculos espelhados, os "jeans", o andar aos tiros no "plateau", o álcool e, mais arriscado do que isso, o andar a atirar facas no "set", e quem é que se espera encontrar? John Wayne. Não, é Sam Peckinpah, uma silhueta mais delicada que aquela que o seu mito deixaria prever.
"Como as pessoas do seu tempo, Peckinpah [1925-1984] era uma personagem contraditória", diz-nos o argumentista David Weddle, que em 1994 pegou na incitação de William Holden em "The Wild Bunch" [1969], "if they move, kill'em!", "se eles se mexerem, matem-nos!", e fez dele o título da sua biografia do cineasta.
"Peckinpah conhecia poesia profundamente. Citava Truman Capote. Quando o conheci, na rodagem de 'Osterman Weekend' [1983], falámos de Tenessee Williams, Fitzgerald. Parecia um professor de inglês" - na biografia de Weddle, o jovem Peckinpah é um apaixonado por teatro, por Tchekov, Brecht, e Williams, sobretudo Williams, embora o passado familiar, a origem de conquistadores da nova fronteira americana, exigisse dele a pose de "cowboy". Que forçou e interiorizou.
"Mas na presença de várias pessoas, só falava de futebol", continua Weddle, numa conversa telefónica com o Ípsilon. "Por exemplo, na rodagem desse filme ["The Osterman Weekend"] eu estava acompanhado pelo meu pai. Os dois só falaram de futebol. Esse lado de macho era uma máscara típica dos homens da sua geração - que era a geração do meu pai. Havia toda uma vida escondida dentro dele, uma série de fragilidades. E isso ele não podia resolver, por isso pôs isso tudo nos filmes."

David Weddle pôs também isso na biografia que escreveu, o resultado de mais de 500 horas de entrevistas que, estrutura escolhida, mistura algo próximo da monografia, da análise da obra - os filmes desfilam desde sexta-feira na Cinemateca, em Lisboa -, com a biografia de um homem que seria "macho" mas também foi chamado de "misógino" e "fascista". "It's not art" It's not cinema" It's pure wasted insanity!", escreveu um espectador no seu cartão de reacções a seguir à sessão de "The Wild Bunch", 1 de Maio, 1969, Royal Theater, Kansas City. "'The Wild Bunch' é um filme poderoso" - escreveu o realizador Paul Schrader - "porque vem das tripas da América e de um homem que está a tentar tirar a América das suas tripas".

Isto era: o Vietname, o assassinato de Bobby Kennedy, os "riots" raciais nas cidades norte-americanas, e a amizade e a traição. E a consciência de uma masculinidade e um mundo em perda (e o casamento e a traição) - tudo isso já das tripas de Peckinpah.
Isto é, já que falamos nele, "The Wild Bunch" e aquele Oeste em mudança, algures no México, em que uma quadrilha dita selvagem - "los gringos otra vez" - se atira para o fogo, como o escorpião devorado pelas formigas no plano inicial. Depois de quase-"paralíticos" sobre os rostos de William Holden, Ernst Borgnine e dos outros, há o sorriso deles e quase que os ouvimos dizer, abraçando o destino: "if we move, shoot us". Mexeram-se. Foi o filme de abertura do ciclo.

"Em todos os filmes há um lado de erupção visceral, coisas que vêm de dentro dele. Mas há traços de coisas que se parecem com o seu país, com o seu tempo", sublinha Weddle. Já está nos seus primeiros trabalhos para televisão, que nos anos 1950/60 foi um viveiro para o "western". (Nesses tempos conheceu Don Siegel, homem que gostava de moldar o talento jovem, já que fez o mesmo a outro que canalizou a raiva para os filmes: Clint Eastwood; Peckinpah trabalhou com Siegel, entre outros, em "Invasion of the Body Snatchers", 1956). Mas esse turbilhão do pessoal e do colectivo só se desenvolve no seu cinema. Desde um filme inicial como "Ride the High Country", realizado no mesmo ano em que John Ford se começava a despedir do "western", em 1962, com "O Homem que Matou Liberty Valance". Peckinpah estava a começar, e se calhar por isso nunca mais foi assim tão puro, com duas velhas glórias do "western", Joel McCrea e Randolph Scott, que interpretam dois amigos com uma quantia de ouro entre eles, amizade e traição. Nunca mais houve tanta luz, e não deve haver outro "western" assim a contemplar o fim, a morte de uma América, com montanhas em fundo. (É quase mais Ford que Ford).

Na obra seguinte, um filme de cavalaria, território fordiano por excelência, o negrume já estava instalado. E "Major Dundee" confirmava que Peckinpah, afinal, a ser filho seria um filho bastardo, de John. Passar de uma coisa à outra é que é uma sacudidela brutal neste ciclo. E depois quem conseguir que se aguente.
"Houve uma série de razões que configuraram dessa forma esse filme ["Ride the High Country"]. Primeiro o pai morreu, o seu próprio casamento acabou, e Sam decidiu fazer uma históra mítica sobre o pai e os seus valores [retratados na personagem de Joel McCrea]. Em 1962 a América estava a mudar. Ele estava a filmar a morte do pai e a morte de uma certa América. Começava o Vietname, Keneddy [JFK] estava à beira de ser assassinado. 'Ride the High Country' era um 'valentine' a essa América, uma América que tinha sido predominantemente rural. Nos anos 60 o país estava a tornar-se urbano, por isso, aliás, é que o western morreu. E em 1965 [o ano de 'Major Dundee'] esses sinais já estavam evidentes. 'Riots' nas cidades, atrocidades dos soldados no Vietname, a corrupção nas instituições tão malévola como o mal que a democracia combate...".

Quando a América se perdia no Vietname e no edifício Watergate, foi assim nos "westerns", em "Pat Garrett and Billy the Kid" (1973), em que ninguém se atira para a morte mas contempla a sua chegada (por isso a convulsão de "The Wild Bunch" deu lugar a um "rigor mortis" pronunciado neste filme problemático, o mais duro braço de ferro do realizador com os estúdios depois de "Major Dundee"), foi assim em "Bring me the Head of Alfredo Garcia" (1974). E por isso a Peckinpah coube, na história, o papel do homem que deu o golpe de misericórdia num género, que dançou com o seu cadáver uma dança ébria. Não é esta a "tese" de David Weddle. Para o biógrafo, Sam foi o último dos românticos.

"Dizia-se que ele era um niilista por causa da violência. No seu tempo só se via isso. Mas hoje a violência já não é tão chocante como era antes, por isso o que fica é o romantismo. A profundidade, a complexidade... Ele foi um realizador profundamente romântico. A percepção só pode mudar: 'Straw Dogs' [1971, um dos "casos" mais polémicos, em termos de recepção pública, da obra do realizador - ver caixa nestas páginas] não é hoje um filme tão chocante pelo que acontece no ecrã. É chocante por causa das personagens. É como uma peça de xadrez, como 'A Faca na Água' de Polanski".

Dizia-se também que o cinema der Peckinpah procedia a uma desmistifação - do "western". Mas Sam, afinal, substitui um mito por outro(s): algo de brutal e melancólico, porque só assim podiam existir em simultâneo a fantasia de uma criança com a brutalidade que essa criança, quando homem, descobriu nas fundações da América. "O que ele nos dá são detalhes de um mundo, como um pintor: dá-nos o sabor de um mundo. E assim torna esse mundo real. Mas esse mundo não é real, é mítico".

Filho bastardo de John Ford, dizia-se. David Weddle diz: "Maior do que John Ford". "Peckinpah levou o 'western' até um apogeu no momento em que o género estava a morrer. Ele não matou o género. Ele fez a crónica dessa morte. Os seus filmes são muito complexos, cheios de camadas. Tão complexos como a experiência americana". Peckinpah!

Sugerir correcção
Comentar