Miguel não é incomodado pelos colegas, mas se for responde: "Eu tenho dois pais e tu não!"
É um comum quarto andar, com elevador, em Santarém. Nele vivem Fabíola Cardoso e os dois filhos - ela em idade pré-escolar, ele na primária - que decidiu gerar no seio de uma relação lésbica que durou dez anos. Depois da casa e dos gatos, instalou-se a necessidade ("embora a diferentes velocidades") de ter uma criança. A adopção era a hipótese, mas era necessário mentir. Decidiram que Fabíola engravidaria. Hoje, fá-lo-ia pela terceira vez.
A relação terminou depois do nascimento da menina, mas a ex-companheira mantém o papel de progenitora. O que irrita Fabíola é que se lhe acontece algo, legalmente as crianças são entregues a uma instituição ou à avó, que as vê uma vez por ano, e não a quem as tem ajudado a criar. "Ela não é legalmente ninguém; é injusto."
O medo é partilhado por Diogo e Ricardo (nomes fictícios), pais de Miguel, adoptado pelo segundo noutro país há sete anos, quando aí trabalhava. Tinha nove meses quando Ricardo o recebeu e dois anos quando regressou a Portugal e começou a morar com Diogo.
Nos dois casos as crianças estão perfeitamente integradas na escola e na família. Se discriminações existem em relação a casais homossexuais com filhos, Fabíola, Diogo e Ricardo garantem não ter experiência delas. O filho diz na escola que tem dois pais e não sabem de qualquer episódio em que os amigos tenham feito comentários maldosos. "Não estranhava que ele respondesse "e eu tenho dois pais e tu não!"", ri-se Diogo. Já Fabíola, que é professora do secundário, diz acreditar "que venham a ter problemas mais tarde com alguns comentários de amigos - as crianças sabem ser cruéis -, mas também julgo que serão fortes e espero que as instituições saibam reagir".
Fora de portas não precisaram de dar tantas explicações em tom didáctico como faz Fabíola, bastou-lhes aparecer e afirmar que são os pais de Miguel. Consideram-se aceites; se não o fossem, os outros pais "arranjavam uma desculpa para não vir às festas de anos do Miguel e aparecem sempre muitos".
"A primeira vez que fomos juntos à escola, num dia dedicado aos pais, de oito alunos, éramos o único casal, os outros eram ou o pai ou a mãe. Temos uma vida social absolutamente normal", conta Diogo. As duas famílias dão todo o apoio, Miguel convive diariamente com os primos e fica em casa dos avós e tios se os pais quiserem sair.
Tratar as duas por "mãe"Os filhos de Fabíola tratam as duas por "mãe" e a terceiros até dizem "as minhas mães", conta Fabíola, lembrando que no mural da família na sala de aula o filho tinha as fotos das mães. "O que é perturbador para as crianças é a falta de amor, não a homossexualidade", comenta. Recorda uma vizinha que perguntou ao filho, no elevador, se ele era parecido com o pai. "Não tenho pai, tenho duas mães", respondeu a criança. A vizinha ficou sem lhe falar seis meses, depois Fabíola explicou-lhe a sua relação e que os filhos não têm pai. "Hoje vem cá trazer-lhes chocolates com frequência."
Diogo ainda hoje recorda o momento em que o filho o adoptou como pai - sim, foi a criança que deu esse passo. "Eu e o Ricardo estávamos na cozinha e o Miguel chamou "pai!". Ele chamava pai apenas ao Ricardo e nem me virei. Ele agarrou-me as calças a dizer "pai, estou a falar contigo!"" Depois do baque no coração, veio uma imensa alegria, descreve. Desde então o pequeno Miguel chama ambos de pai, de forma indiferente, mas quando fala sobre eles a terceiros, são o "pai Ricardo" e "o pai Diogo".
Aos três anos perguntou pela sua mãe. Ricardo explicou-lhe que ela não tinha condições para o criar e preferia que ele estivesse com quem o pudesse fazer. "Falamos com total transparência e naturalidade, de acordo com os estágios de maturidade do Miguel", acrescenta.
"Queremos ser uma família tradicional. Agora queremos uma menina", provoca Ricardo rindo. Até o pequeno Miguel já disse que quer um irmão. Mas isso ainda vai demorar. "Para o fazer em Portugal seria preciso ocultar que estamos juntos e não estamos dispostos a fazê-lo", declara o pai Diogo. Tem a certeza de que qualquer retrato da actual vida a três "seria um ponto positivo para o processo".
Ricardo é mais determinado e conhece a larga maioria dos estudos científicos sobre homossexualidade e parentalidade feitos um pouco por toda a Europa e Estados Unidos: "Não tenho dúvidas de que somos melhores pais e estamos mais preparados que a média dos adoptantes. Temos uma experiência de paternidade de sete anos."