A Nova Iorque de John Lennon

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Vinte e nove anos depois do assassinato do ex-Beatle, uma exposição em Manhattan revive a paixão de John Lennon pela cidade. "Se eu tivesse vivido na época do Império Romano, teria vivido em Roma. Onde mais? Nova Iorque é Roma. Nova Iorque é o centro da Terra", dizia ele

Hoje o fotógrafo Bob Gruen sabe que, num momento qualquer, vai repetir instintivamente o que faz todos os dias há 29 anos - pensar em John Lennon. No dia 8 de Dezembro de 1980, Gruen, um dos mais conhecidos e respeitados fotógrafos de rock & roll, tinha um encontro marcado com Lennon para lhe mostrar as fotografias que tirara ao ex-Beatle dois dias antes. Atrasou-se na revelação e nunca mais viu o amigo - Lennon levou quatro tiros disparados por Mark Chapman às 22h50, quando chegava ao prédio Dakota, onde morava. Foi declarado morto no hospital pouco depois das 23h.

"Isto atormentou-me durante anos. Talvez eu pudesse ter feito a diferença, mudado algo", diz Bob Gruen ao P2. "A morte é uma palavra muito permanente. Quando a ouvi, comecei imediatamente a pensar: "O que posso fazer para mudar, para consertar isso?" Adoro consertar coisas, mas não podia fazer nada. Ele morreu de forma não natural. É difícil aceitar. Penso em John todos os dias. A memória dele vive comigo."

Bob Gruen tirou a primeira foto de John Lennon e Yoko Ono em 1972. Tornaram-se amigos. Até ao assassinato de John Lennon foi o fotógrafo particular do casal. Documentou os anos de Lennon em Nova Iorque. É dele a foto do músico com a camisola que diz "New York" e que define a relação de Lennon com a cidade. "Ele não estava a fazer de nova-iorquino, ele era um nova-iorquino e tinha muito orgulho disso." As palavras são de Gruen e aparecem na legenda da T-shirt que está a ser mostrada pela primeira vez ao público na exposição John Lennon and the New York City Years, no Rock & Roll Hall of Fame, no Soho, um dos bairros mais carismáticos de Nova Iorque. Nela reúne-se fotos, vídeos, cartas, desenhos, originais de letras de músicas, objectos, alguns expostos pela primeira vez.

Mais do que uma colectânea de momentos e memórias de Yoko Ono, que a organizou, John Lennon and the New York City Years é uma declaração de amor à cidade que para o músico de Liverpool andava à mesma velocidade que ele: 24 horas por dia.

"Lamento não ter nascido norte-americano, lamento não ter nascido em Greenwich Village", dizia John Lennon nos anos 70, os seus anos em Nova Iorque, um período marcado pela campanha contra a guerra do Vietname, pelo movimento pacifista e pela luta para não ser deportado. As cartas de apoio da cantora Joan Baez e do então presidente da câmara de Nova Iorque, John Lindsay, ao departamento de imigração estão entre as peças mostradas pela primeira vez. Os protestos de Lennon incomodavam Nixon. Hoje sabe-se que o FBI o investigava, mas o pretexto alegado pela Imigração foi a condenação por posse de drogas na Grã-Bretanha. Depois de quatro anos de guerra em tribunais, John Lennon venceu e o greencard (cartão de residência que permite a um estrangeiro viver e trabalhar nos Estados Unidos) é uma das peças da exposição.

"Hoje a juventude não tem líderes", considera Bob Gruen, "certamente ninguém como John Lennon, que conseguia falar sobre causas tão importantes de uma maneira engraçada, com humor, que fazia com que as pessoas se mobilizassem."

Cidadão da Nutopia

Nas quatro telas do Hall of Fame as imagens de Lennon sucedem-se: a multidão enfrenta a chuva para ouvir a sua música e as suas palavras em Time Square; John e Yoko a declararem-se cidadãos da Nutopia, "país" sem terras, sem fronteiras, sem passaportes...
As causas estão ao lado da música e da arte de John Lennon. Nesta exposição figuram o seu auto-retrato com o rosto no topo da Estátua da Liberdade e as colagens que fez para dar a George Harrison pelo seu aniversário. E há ainda o piano Steinway, com as marcas de cigarro, que ficava perto da cama - era só Lennon despertar e começar a compor (foi nele que escreveu Double Fantasy). Quem percorre John Lennon and the New York City Years pode ver três das suas guitarras e os manuscritos de várias canções, entre elas Whatever gets you through the night, que Lennon acabaria por cantar no concerto histórico de Elton John, em 1974, no Madison Square Garden. Foi neste concerto que Yoko Ono e Lennon se reconciliaram depois de pouco mais de um ano separados, período a que Lennon chamava o "lost weekend" (fim-de-semana perdido).

O conselho de Lennon

"Foi Yoko quem me mostrou Nova Iorque. Ela foi pobre aqui e conhece cada milímetro da cidade", dizia o ex-Beatle. E recomendava: para conhecer Nova Iorque tem de se andar pelas ruas, pelas praças, pelos parques. "Apaixonei-me por Nova Iorque numa esquina." Seguimos o conselho de John Lennon. Vinte e nove anos depois, ao som das mesmas músicas de dois vídeos da exposição - Watching the Whells e Mind Games - começamos a andar pela 5ª Avenida perto do Hotel Plaza, como Lennon nos instruiu, em direcção ao Central Park.

Imagens e sons dos filmes que vimos no Soho misturam-se à Nova Iorque de Dezembro de 2009: John entra na Tiffany"s e sai a comer um cachorro, turistas compram cachorros no quiosque, nova-iorquinos ouvem música nos seus iPods (estarão a ouvir uma canção de John ou dos seus Beatles?), homens e mulheres apressados agarrados aos seus iPhones (a loja da Apple na 5ª Avenida, claro).

"Love is the answer and you know that for sure/ Yes is the answer and you know that for sure,/ Yes is the surrender you got to let it go", canta em Mind games.

John Lennon começa, então, a passear pelo Central Park, crianças seguem-no, um fã quer um autógrafo, estrangeiros com sacos de compras (em tempo de crise parecem ser os únicos a comprar em Nova Iorque), nas lojas toca Happy Christimas (war is over), de Lennon, uma rapariga loira faz jogging.

Faz frio e Lennon dança no parque com um sorriso nos lábios; os turistas apressados dirigem-se a Strawberry Fields (espaço de homenagem ao músico, entre as árvores), onde, em francês, uma mulher ao telemóvel conta a outra ausente que a palavra "Imagine" está rodeada de pétalas de rosa de várias cores; o sem-abrigo pede dinheiro com um cartaz ao lado em que se lê: "Para quê mentir? Preciso de cerveja, paz e amor." Nesta ordem.

Franceses, espanhóis, norte-americanos de outros estados, brasileiros, os turistas chegam de toda a parte. Um rapaz toca violão. John Lennon segura o filho recém-nascido no apartamento no Dakota. "People say I"m crazy, doing what I"m doing (...)/ When I say that I"m okay/ Well, they look at me kind of strange" (Watching the wheels). Garry, o eterno hippie que há 16 anos se tornou o guia não oficial de Strawberry Fields, aponta para uma janela no prédio do músico - era ali que ficava o piano branco, ali do outro lado da rua onde John Lennon foi assassinado. Pais levam os filhos a Strawberry Fields e tiram-lhes fotografias ajoelhados no chão, fazendo o sinal de paz e amor.

Fotografia-ícone

"A Nova Iorque de John Lennon não mudou tanto assim", acredita o fotógrafo Bob Gruen. "Para um artista ainda é um lugar onde é possível ser independente e ter liberdade pessoal para criar." John sentia-se assim. "Eu posso andar pelas ruas quase livremente, as pessoas reconhecem-me, mas não me incomodam muito", dizia. Mas, afinal, por que razão é que, entre milhares de fotografias tiradas ao ex-Beatle, a de Gruen se transformou na imagem icónica de Lennon em Nova Iorque? "Não sei", ri Bob Gruen quando tenta responder à pergunta do P2. A camisola tinha sido um presente do fotógrafo ao amigo um ano antes: "Na época não imaginávamos que a fotografia se ia tornar tão popular. Acho que as pessoas se identificam com ela, porque John está confortável, tão confiante e ao mesmo tempo tão aberto e disponível."

O último objecto da exposição no Soho é um saco castanho que o hospital devolveu a Yoko Ono depois do assassinato. O visitante não vê, mas sabe que lá dentro estão as roupas ensanguentadas. Ao lado, o cartaz com o número de mortos por armas de fogo nos Estados Unidos desde que Lennon foi assassinado - quase um milhão.

Para o ano, Mark Chapman vai pedir para sair da prisão em liberdade condicional. Das outras cinco vezes o pedido foi negado.

O dia de hoje vai chegar ao fim e Bob Gruen sabe em que é que vai estar a pensar. "Era sempre especial ver o John. Por mais informais que fossem os nossos encontros para ver televisão ou tomar chá, eu sabia que estava prestes a ver John Lennon e que aqueles momentos eram muito especiais. Tive muito sorte. Foi um privilégio e uma honra ter sido seu amigo." Gruen fala pausadamente ao imaginar outros tempos. "Imagine é o que John significa", conclui. "Usar a imaginação, ter novas ideias, sempre." Este era John Lennon. Isto é Nova Iorque.

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