Tão amigos que nós éramos

A verdadeira história de amor que aqui se conta não é a dos EUA com o capitalismo - é a de Michael Moore com o seu país

E se Michael Moore tivesse deixado cair a "fachada" de "pára-raios" controverso para fazer um filme onde a sua componente de documentarista militante é, por uma vez, movida por algo de pessoal? Depois da presidência Bush, das armas, do 11 de Setembro, do serviço de saúde, atira-se em "Capitalismo - uma História de Amor" à crise económica, desenhando o sistema capitalista como um monstro que cresceu desregradamente e, no processo, traiu as boas intenções originais em nome da ganância e do regresso a um sistema aristocrata onde os ricos concentram o poder e o dinheiro.


A espantosa montagem de abertura - onde a América contemporânea é comparada ao império romano - explica que Moore continua a dominar como poucos a arte da montagem, mas rapidamente se percebe que esta viagem pelo capitalismo é mais "desfocada" do que lhe é habitual. Os "episódios" dos seguros fraudulentos (paradoxalmente dos momentos mais fortes do filme em termos puramente documentais) são algo laterais à provocante tese central de uns EUA verdadeiramente dominados por poderes económicos conservadores que terão elaborado um autêntico "golpe de estado" financeiro.

E, nessa "desfocagem", percebemos que Moore, suposta némesis dos conservadores e suposto menino bonito dos media liberais, está muito mais próximo do conservadorismo moderado que é hoje quase uma raridade na cada vez mais polarizada política americana. A sua defesa incansável do trabalhador, do "homem comum" que ficou queimado na recessão, contra uma elite política e financeira (republicana ou democrata, é indiferente) desligada da realidade quotidiana, a sua necessidade de punir os supostos "senhores do mundo" que destruiram as poupanças de anos de trabalho, vêm direitinhas dos valores conservadores e clássicos da "heartland America", de um sentido de comunidade que foi criado no próprio centro do capitalismo: Flint, Michigan, a velha cidade da construtora de automóveis General Motors onde Moore nasceu e foi criado e que já servira de ponto de partida para o seu primeiro filme, "Roger e Eu" (1989).

Quando vemos Moore a contar a história da sua família - um pai sindicalizado que trabalhou para a GM toda a sua vida e que, nos tempos áureos do capitalismo, conseguia dar à família um nível de vida quase luxuoso com o mero salário de um operário manual - percebemos que a "história de amor" do título é a de Moore com um sistema em que acreditou toda a sua vida até o ver desvirtuado. "Capitalismo - uma História de Amor" é, vinte anos depois, o "fecho do círculo" iniciado com "Roger e Eu". É por isso que, aqui, há menos dos seus "gags" mais ou menos demagógicos (reduzidos à sua tentativa de recuperar o dinheiro que o Tesouro americano "emprestou" aos bancos para eles se restabelecerem, à colocação de fita policial à volta da "cena do crime" que é a Bolsa de Nova Iorque), e que o filme termina com um curioso apelo à "passagem de testemunho" ("estou a ficar cansado de fazer isto", diz ele na voz-"off").

"Capitalismo - uma História de Amor" é o filme de alguém que admitiu que a América em que vive já não é (ou talvez nunca tenha sido) a América em que julgava viver, e que compreende, ao mesmo tempo, a força e a limitação do que a sua câmara pode fazer. E aí, ganha-se como, provavelmente, o mais sincero dos filmes de Moore - e, provavelmente, o mais interessante, mesmo que por inerência à sua centragem na experiência americana, o mais "difícil" para o espectador internacional.

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