Emilia Galotti vai à frente

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No século XVIII, Gotthold Ephraim Lessing pôs o teatro alemão no mapa ?da cultura europeia. Agora, Nuno M. Cardoso põe Gotthold Ephraim Lessing no mapa ?do teatro português. Quem é esta garota, "Emilia Galotti"?

Há simpósios inteiros sobre "Emilia Galotti" no Canadá (e isto é para não irmos à Alemanha, onde há, mais do que simpósios inteiros sobre "Emilia Galotti", todo um edifício do teatro nacional construído em cima do homem que a inventou, Gotthold Ephraim Lessing). E por cá nada. Não a conhecíamos, nem sequer de vista, até anteontem. Depois de, no século XVIII e em parte por causa desta garota, Emilia Galotti, Lessing ter posto o teatro alemão no mapa da cultura europeia, Nuno M. Cardoso põe Lessing no mapa do teatro português - um sítio onde o fundador do teatro moderno em língua alemã nunca tinha sido encenado e praticamente não tinha sido traduzido. É no Teatro Carlos Alberto (TeCA), Porto, até 8 de Novembro. Agora a nossa casa também é a casa dele.

Nuno M. Cardoso anda a ler os alemães há anos - só entre o Teatro Nacional S. João (TNSJ) e o TeCA montou Goethe ("Gretchen", 2003), Fassbinder ("O Café", 2008) e Brecht ("Baal", 2009) - e tinha "Emilia Galotti" na cabeça desde 2006 (não juramos, mas pode ter a ver com isto: era o livro que Goethe tinha na escrivaninha quando se suicidou). Esteve este tempo todo à procura dela, porque tinha de ser a rapariga certa: "Tem de ser uma actriz jovem a fazer a Emilia Galotti, mas uma actriz jovem com maturidade técnica e maturidade pessoal. Foram três anos à procura. Finalmente encontrei a Teresa Tavares e então isto fez-se", explica Nuno M., agora que está feito. Também nós vamos andar à procura dela, dentro e fora destes cinco actos: "Parece que o próprio Lessing se esqueceu da Emilia Galotti. Das mais de 20 cenas que tem a peça, ela só entra em três. Parece que aparece só para ser seduzida e para se matar".

O momento seminal

É uma maneira de falar. Emilia Galotti aparece, como refere João Barrento (que fez, por encomenda de Nuno M. Cardoso e dos coprodutores do espectáculo, O Cão Danado e Companhia e o TNSJ, a tradução), para ser "a primeira figura feminina do teatro alemão (a única no século XVIII) a poder dizer ‘Eu!'" "É a intensidade das três cenas em que ela aparece", continua Nuno M., "que precipita tudo o que acontece no texto - ela é a única personagem que realmente decide alguma coisa aqui, a única personagem a escapar ao destino e à divina providência". Na proto-história do processo de recomposição do teatro alemão em particular e da sociedade alemã em geral, retoma o tradutor no texto do programa, "Emilia Galotti" representa "o momento seminal" em que "a família burguesa, com o seu proteccionismo, começa a abrir brechas por onde passarão a vontade de afirmação artística, formas de subjectividade exacerbada, a sexualidade e a libido, a produção do desejo e a liberdade de escolher a morte". Há um antes e depois deste momento em que o sistema de valores feudais ameaça ceder e em que as coisas tal como já não chegámos a conhecê-las (porque para isso teríamos de ter estado vivos, e a encher-nos de bolos, antes da Revolução Francesa) têm efectivamente o ar de não estar para durar. Emilia Galotti está exactamente no meio - não no antes, não no depois, mas no preciso momento em que a burguesia começa a abanar, para não deixar pedra sobre pedra, a pirâmide social europeia.

Luta de classes

É isso que acontece, com Emilia Galotti, nesta peça - ela a preferir deixar-se matar pelo pai (Carlos Pimenta) do que submeter-se à violência do desejo do Príncipe Gonzaga (Albano Jerónimo), à violência de todo o aparelho da corte, cujo mais longo braço é o de Marinelli, secretário do Príncipe (Dinarte Branco) -, e também é isso que acontece, com Lessing, ao teatro alemão. A encenação de Nuno M. Cardoso não está especialmente interessada nem na leitura política da luta de classes do século XVIII alemão nem na leitura académica do reposicionamento do teatro germânico, até aí dominado pelo modelo francês, ainda que ele tenha o seu Lessing na escrivaninha: "Já o conhecia como teórico da dramaturgia e finalmente, há uns anos, vieram parar-me às mãos as obras dele. A primeira que li foi ‘Nathan, o Sábio', um texto em que o Lessing cruza as três grandes religiões monoteístas sem preconceitos, e depois descobri esta pedra preciosa que é a ‘Emilia Galotti', um texto que me interessa sobretudo pela força da personagem feminina. Não quis, de todo, sublinhar a leitura politica, mas ela está lá desde logo no cenário [de Paulo Capelo Cardoso]". Emilia Galotti, a mãe (Ana Bustorff), o pai e mesmo a Condessa Orsina (Rita Calçada Bastos) dão com a cabeça no muro aparentemente intransponível que começa a rachar - e mesmo que a heroína morra no fim, vemos bem que ela abriu caminho, com aqueles "collants" vermelhos feitos para andar, a essa grande construção do século XIX que é a classe média.

É uma bela caminhada, a desta garota que vê uma saída onde nós víamos o abismo, argumenta o encenador: "Não é por não haver uma saída que ela decide morrer. A morte, justamente, é uma saída".

Agora, se a virmos na rua, já sabemos dizer quem é Emilia Galotti. Tem de ser aquela garota que vai à frente.

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