Católicos dizem que Saramago é "ignorante" em relação à Bíblia

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Saramago volta a provocar a ira da Igreja. Católicos qualificam críticas do autor de Caim como "operação de publicidade". A controvérsia parece estar nos genes do escritor.

É uma espécie de sequela de um filme já visto no passado. O protagonista mantém-se: José Saramago. E o tema também: a religião. A diferença é que as palavras que reacenderam o rastilho da polémica surgiram a propósito do livroCaime não deO Evangelho segundo Jesus Cristo.

A partir de Penafiel, onde decorreu domingo o lançamento mundial do seu livro, o Nobel da Literatura de 1998 referiu-se à Bíblia como "um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana". O Corão "é a mesma coisa", segundo o escritor: "Imaginar que Corão e a Bíblia são de inspiração divina? Francamente! Como? Que canal de comunicação tinham Maomé ou os redactores da Bíblia com Deus, que lhes dizia ao ouvido o que deviam escrever? É absurdo. Nós somos manipulados e enganados desde que nascemos."

Estas palavras abriram um caudal de críticas. Da comunidade judaica, o rabino Eliezer di Martino arrumou Saramago como mais um dos "milhões de autores que fazem um esforço enorme para falar mal da religião, sobretudo das religiões bíblicas". Assim, "o mundo judaico não se vai escandalizar pelo que escreve o senhor Saramago", garantiu Di Martino, para quem o escritor "não conhece a Bíblia nem a sua exegese", limitando-se a fazer "leituras superficiais" do livro.

Ao PÚBLICO, o secretário da Nunciatura Apostólica de Lisboa garantiu que não haverá uma reacção oficial do Vaticano. Já o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, Manuel Morujão, classificou as críticas de Saramago como "uma operação de publicidade" para aumentar as vendas do livro. "Um escritor da craveira de José Saramago deveria ir por um caminho mais sério. Poderá fazer as suas críticas, mas entrar num registo de ofensa não fica bem a ninguém, sobretudo a quem tem um estatuto de Prémio Nobel", admoestou.

"Seria espantoso que um escritor como José Saramago, ateu professo, encontrasse algo de divino na Bíblia ou no Corão. Mas esperar-se-ia que reconhecesse o valor de obras que estão entre os grandes textos do património literário da Humanidade", condenou, por seu turno, Peter Stilwell, director da Faculdade de Teologia da Universidade Católica.

O bispo do Porto, D. Manuel Clemente, também ouviu Saramago e concluiu que as incursões bíblicas do escritor revelam "uma ingenuidade confrangedora". "Bastava ler a introdução de qualquer Bíblia para lhe dar uma significação bem diferente da que lhe quis dar", reagiu.

D. Manuel Clemente protagonizou, em 1991, um debate com Saramago a propósito do lançamento do Evangelho segundo Jesus Cristo. Na altura, o Governo, presidido por Cavaco Silva, juntou-se ao descontentamento da Igreja Católica e vetou o nome de Saramago como candidato ao Prémio Literário Europeu. O escritor zangou-se com o país e auto-exilou-se na ilha de Lanzarote, onde ainda reside com a mulher, Pilar del Rio.

Esta foi apenas a primeira de uma longa sucessão de controvérsias, muitas delas sem relação directa com os seus livros, o que parece contrariar a tese dos que querem ver nas suas polémicas uma deliberada estratégia publicitária. Para referir apenas algumas das provocações mais recentes, Saramago enfureceu Israel ao comparar a situação na Palestina a Auschwitz, irritou Berlusconi com uma série de artigos em que lhe chamava "vírus" e outras coisas igualmente desagradáveis, aborreceu os seus camaradas de partido ao demarcar-se da liderança cubana - quando o regime condenou à morte três responsáveis pelo desvio de umferry- e indignou alguns portugueses com a sua previsão de que Portugal fará um dia parte de Espanha. Outras vezes são os próprios livros que geram discussões, nas quais o autor só participaa posteriori, e, diga-se, raramente para as tentar esvaziar. Saramago teve sempre uma costela de polemista e provocador. Quando a TVI censurou um anúncio à sua peça de teatroIn Nomine Dei,em 1993, reagiu com este voto: "QueDeus lhe dê uns bons açoites."

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