Europa veste a camisola "Libertem Polanski"

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Ina Fassbender/REUTERS

Um crime com 32 anos e muitas histórias judiciais e pessoais mal contadas cruzam-se numa quase luta diplomática entre o Velho e o Novo Mundo. O realizador de "O Pianista" e "A Semente do Mal" foi preso no sábado e arrisca a extradição para os EUA, de onde fugiu em 1978 depois de ter mantido relações sexuais com uma menina de 13 anos. Ela perdoou-o. E nós?

A história tem os contornos de qualquer detenção de uma celebridade particularmente amada e detestada, sobretudo quando envolve um crime sexual com menores. Tal como aconteceu com Winona Ryder ou Michael Jackson, do embate de Polanski com a justiça já resultou um ícone do consumismo na cultura pop. É verdade, elas aí estão - as t-shirts "Free Roman Polanski" já emergiram na Internet e estão à venda por preços entre os 10 e os 22 dólares. É o preço a pagar por uma história com 30 anos de sexo, mentiras e vídeo.

Há já muitos dispostos a vestir a camisola da causa "Libertem Polanski". Amigos, admiradores, artistas, nomes de todo o mundo estão a mobilizar-se. Barbet Schroeder, Costa-Gavras, Wong Kar-wai, Fanny Ardant, Ettore Scola, Giuseppe Tornatore e Monica Bellucci são alguns dos cerca de 70 signatários célebres da petição que exige a libertação imediata de Polanski e que contestam a "armadilha policial" que o apanhou.

Roman Polanski foi detido no sábado à noite em Zurique, onde vai ser homenageado com um prémio de carreira no festival de cinema da cidade. Já passou três noites na prisão por um crime cometido e admitido há 32 anos. E cuja vítima abdicou da queixa. Polanski teve relações sexuais com uma menina de 13 anos em 1977. O crime é público, pelo que a acusação e o mandado de captura se mantêm. A Suíça tem acordo de extradição com os EUA e desta vez sabia onde encontrar Polanski.

O realizador de "Chinatown" e "O Pianista" (que lhe valeu um Óscar, recebido em 2003 por Harrison Ford pela impossibilidade de Polanski viajar até aos EUA devido ao mandado de captura) agradece a todos os que têm manifestado o seu apoio após a sua detenção. E, segundo o seu agente Jeff Berg, mantém o ânimo. "A voz dele é forte... está muito ansioso para resolver isto e ir para casa", disse Berg à BBC Radio 4.

Ontem, os advogados do realizador de 76 anos rejeitaram o pedido de extradição para os EUA. "Tendo em conta as circunstâncias extravagantes da sua detenção, o seu advogado suíço solicitará que ele seja posto em liberdade sem demora", disse ontem o advogado Hervé Temime em comunicado, citado pela AFP. "A sua defesa sustentará a ilegalidade do pedido de extradição de que ele é alvo." Em causa estará a possível prescrição do caso, defendem os advogados do realizador.

Europa vs EUA

Vários países europeus saíram já em defesa de Polanski e ao ataque não só dos EUA, mas também da Suíça. A organização do Festival de Zurique está estupefacta com a detenção do realizador, presença habitual na Suíça - onde, aliás, tem uma casa, em Gstaad, na qual passou o Verão. A Associação Suíça de Realizadores critica "o escândalo jurídico que danificará a reputação" do país da neutralidade, do sigilo bancário, das estâncias de esqui e dos chocolates.

A imprensa suíça reflectia ontem o que dizia ser o mal-estar causado no país pela emboscada ao realizador de O Quê? "Vergonha", "desgaste na imagem", afronta à Polónia e à França (países que partilham a filiação de Polanski), "choque aos cinéfilos e aos amigos das artes", "ridículo", lê-se nos editoriais.

E as críticas continuam, ao mais alto nível: "Abominável", categorizou o ministro francês da Cultura, Frédéric Mitterrand; "chocante", lamentou a directora-geral da UNESCO, a búlgara Irina Bokova. Entretanto, o chefe da diplomacia francesa, Bernard Kouchner, e o seu homólogo polaco, Radoslaw Sikorski, escreveram à secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, pedindo a libertação do cineasta. A justiça americana dispõe de 40 dias para pedir oficialmente a extradição, com um prazo extra de 20 dias. E Polanski pode recorrer em qualquer fase do processo.

Regresso a 77

Mas voltemos a 1977. No dia 10 de Março, uma jovem de 13 anos, Samantha Gailey (hoje de apelido Geimer, mãe de três filhos), participava numa sessão fotográfica para a Vogue. Por trás da câmara estava Roman Polanski e o cenário era a casa de Jack Nicholson. A sessão foi autorizada pela mãe de Samantha, que queria ver a filha ser uma estrela. A dada altura, o champanhe e os analgésicos entraram em cena. Polanski argumentaria que o sexo entre os dois teria sido consensual, Samantha nega.

"Eu disse: ‘Não, não! Não quero ir para ali! Não, não quero fazer isto! Não!', e depois não sabia o que fazer. Estávamos sozinhos e eu não sabia o que aconteceria se eu fizesse uma cena. Estava com medo e, depois de resistir um pouco, pensei, bom, a seguir posso ir para casa", disse Geimer numa entrevista, recuperada ontem pelo Times. Dia 15 de Abril começava o processo judicial por violação de menor, apresentado pelos pais de Samantha. Polanski declara-se inocente.

Em Agosto, muda de estratégia e assume o crime de relações sexuais com uma menor, no âmbito de um acordo. O juiz Laurence J. Rittenband condena-o a três meses no hospital-prisão de Chino para ser submetido a "exames mentais" - dá entrada em Chino em Dezembro, de onde é libertado ao fim de 47 dias. No final de Janeiro de 1978, Polanski sabe que Rittenband planeia tentar condená-lo e que incorre numa pena que pode chegar aos 50 anos de prisão. Foge para Paris e nunca mais volta aos EUA. Há dez anos, pôs fim ao processo cível interposto por Geimer pagando uma indemnização de 225 mil dólares.

De novo em 2009, a detenção de Polanski foi cuidadosamente planeada pela comarca judicial de Los Angeles, que na semana passada reenviou às autoridades suíças um mandado de detenção depois de ter sabido que o realizador estaria no festival. "Sempre que sabemos que o sr. Polanski planeia estar num país que tem acordo de extradição com os EUA, enviamos o mandado de detenção através dos canais diplomáticos", disse Sandi Gibbons, porta-voz do Gabinete do Ministério Público (MP) de Los Angeles, ao New York Times.

O jogo do gato e do rato nunca parou, mantêm as autoridades judiciais americanas. Não é verdade, dizem os advogados americanos de Polanski, Chad Hummel e Douglas Dalton, tendo como base garantias de delegados do MP de Los Angeles.

A ministra suíça da Justiça, Eveline Wildmer-Schlumpf, disse que "não havia outra solução" a não ser deter Polanski, algo que não aconteceu antes porque as suas idas e vindas não eram conhecidas de antemão. A explicação não convence as diplomacias francesa e polaca: "Não acusamos a justiça internacional, mas sim a forma como ela foi utilizada", explicou Kouchner à rádio France Inter. "Tudo isto é muito feio", classifica Kouchner. "Um homem de tal talento, reconhecido no mundo inteiro, reconhecido sobretudo no país que o prende", suspira o ministro.

Tanto as declarações contraditórias no campo judicial quanto o apoio fervoroso da Europa em torno de um dos seus realizadores de culto são mais um adágio - no mesmo tom - de uma sinfonia ácida de 32 anos. Na Europa, Polanski é reverenciado e visto como uma espécie de vítima de uma justiça americana fanática; nos EUA, é o viúvo de Sharon Tate, cujo brutal assassinato às mãos da seita de Charles Manson, grávida de oito meses, nunca descolou da imagem do cineasta e que, oito anos depois desta tragédia, violou uma menina de 13 anos.

Polanski: Wanted and Desired, um documentário produzido pela HBO em 2008, apenas tornaria essa divisão mais visível e, ao mesmo tempo, daria força a uma tese que até aí tinha ficado na penumbra: Geimer perdoou Polanski, não o considera uma ameaça pública e junta-se ao coro de críticos da forma como o Tribunal de Los Angeles geriu (mal) o processo.

A figura em xeque é o juiz Laurence J. Rittenband, propenso a casos envolvendo celebridades e sensível ao que chamava a "pressão do público", e que o próprio delegado do Ministério Público da época, Roger Gunson, considera ter agido de forma duvidosa. Mais, o documentário revela que, em 1997, o juiz de Los Angeles Paul Fidler tinha informado Polanski de que ele poderia voltar ao país sem ser preso, mas que a sua audiência em tribunal teria de ser transmitida pela televisão. Polanski recusou.

Depois disto, os advogados de Polanski tentaram pedir a anulação das acusações que pendem sobre o realizador. Mas quiseram que esse pedido fosse julgado fora daquela comarca por acreditarem que o Ministério Público de Los Angeles é tendencioso e que quereria fazer do caso Polanski um exemplo. O pedido foi indeferido em Fevereiro deste ano, tendo o juiz sublinhado que Polanski continua a ser um fugitivo - mas tendo também admitido que houve uma "substancial má conduta" no processo judicial original. A defesa recorreu.

Hoje, Geimer acusa o Ministério Público de Los Angeles de recuperar os detalhes mais "chocantes" da história para afastar essa outra história: a da perversão do próprio sistema judicial de Los Angeles. "Por mais que sejam verdadeiros, a publicação continuada desses detalhes prejudica-me", diz Geimer.

Em suma, o caso divide opiniões e vestir uma camisola de apoio a este movimento é um acto que pede apurada reflexão. Winona Ryder, de facto, roubou numa loja. As acusações contra Michael Jackson nunca foram provadas. Roman Polanski admitiu o seu crime e a sua vítima diz já tê-lo perdoado. Mais do que um jogo da apanhada judicial ou de marketing pop, a detenção do realizador confronta-nos com a questão: até onde estamos dispostos a levar o perdão, mesmo quando envolve um cineasta cujo trabalho fala mesmo por si, com a crueza, o humor e a exploração dos seus fantasmas patente em (quase) todas as suas obras?

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