Foi preciso esperar oito anos, mas Ruy de Carvalho está finalmente de volta ao palco do Teatro Nacional D. Maria II. Vem na pele de um velho e teimoso actor-empresário, a lutar pela sobrevivência, e tem ao lado Virgílio Castelo, o fiel camareiro - e muito mais do que isso.
Na fachada do Teatro Nacional D. Maria II, na Baixa de Lisboa, estão penduradas duas enormes fotografias de Ruy de Carvalho e Eunice Muñoz - é o regresso em grande dos dois actores que foram forçados a deixar o D. Maria II, acreditando que voltariam ao fim de três meses. Esperaram oito anos e só agora, pela mão de Diogo Infante, director do Nacional, voltam a pisar aquele palco (Ruy de Carvalho surge desde ontem em "O Camareiro"; e Eunice Muñoz estreará em Novembro "O Ano do Pensamento Mágico").
Neste momento, no interior por trás da fachada, Ruy de Carvalho está a transformar-se em Sir, um velho actor-empresário que luta pela sobrevivência da sua companhia shakespeareana (e pela sua própria sanidade mental) enquanto as bombas caem sobre a Inglaterra dos anos 40, em plena Segunda Guerra Mundial. Esta figura de um actor que não está pronto para abandonar o palco parece o papel perfeito para Ruy de Carvalho que, aos 82 anos, se confessa surpreendido com a sua própria energia.
Sir - uma personagem criada por Ronald Harwood, nascido em 1934 na África do Sul mas a viver em Londres desde a juventude - não é um homem fácil e as pressões da vida que leva deixaram-no à beira da demência. Quando Ruy de Carvalho surge pela primeira vez em palco é como um Sir desaustinado, que rompe em lágrimas e diz coisas sem sentido. A peça dessa noite, que será a sua 227ª representação de "O Rei Lear" de Shakespeare, parece em risco.
No camarim espera-o Norman (Virgílio Castelo), o fiel camareiro, o único capaz de o ajudar a recompor-se e a preparar-se para entrar em palco. "O camareiro é a sombra do Sir. São duas personagens muito fortes", explica o encenador João Mota. E a peça funciona nesse equilíbrio delicado entre um velho egocêntrico mas fragilizado, e um camareiro frágil e dependente, mas que se torna a força por trás do velho actor.
"Estou aqui porque gosto muito do Diogo Infante", diz Ruy de Carvalho, terminado o ensaio de duas horas, já despido das vestes de Sir/Lear. O convite inicial (tanto aos actores como ao encenador) foi feito quando Infante ainda estava no Maria Matos, mas quando se mudou para o D. Maria II o convite manteve-se. "Eu estava para não vir aqui mais. Os que mandam na tutela do Teatro Nacional não me merecem consideração nenhuma, só me fizeram mal", sublinha Ruy de Carvalho. "Aceitei porque foi o Diogo que me convidou".
Não há no actor ponta da amargura e do sofrimento que marcam a relação de Sir com o teatro. "Ele é um ditadorzinho barato. É um actor que já está um bocado senil, em decadência, raivoso por nunca ter sido verdadeiramente Sir, já não sabe porque é que chora, porque é que anda aos gritos na rua, porque é que pisa o casaco".
Debaixo das bombas
Ronald Harwood inspirou-se numa figura que ele próprio conheceu. Depois de se ter mudado para Londres, com 17 anos, começou a trabalhar no teatro e juntou-se à Shakespeare Company de Sir Donald Wolfit, um dos últimos actores-empresários britânicos, de quem foi camareiro entre 1953 e 1958. "The Dresser", que foi primeiro uma peça da Broadway e depois, em 1983, um filme de Peter Yates, parte das suas memórias desses tempos em que as companhias especializadas em Shakespeare viajavam por toda a Inglaterra.
"Só alguns chegavam a Londres", recorda Harwood num texto do programa da peça. "O seu lugar preferido era o interior e andavam em digressão sob terríveis condições físicas, longas jornadas, desconfortáveis viagens de comboio aos domingos, passando muitas horas à espera de ligações num entroncamento ferroviário no meio de Inglaterra chamado Crewe. Num domingo, em Crewe, mudavam de comboio dúzias de companhias de teatro: os actores e actrizes encontravam velhos amigos, bisbilhotavam, descobriam 'castings' e, se necessário, chegavam a fazer audições na plataforma."
As salas enchiam - "nesta peça há um elogio ao público, que esgota salas com bombas a rebentar em plena guerra", frisa João Mota - e apesar das dificuldades os actores iam sobrevivendo. Lutar e sobreviver é o lema de Sir. Mas nem ele próprio se dá conta de como, para isso, depende do seu camareiro de gestos efeminados e de um amor sem limites pelo velho e rabugento patrão.
"Esta é uma personagem que me obriga a ir para registos completamente diferentes", explica Virgílio Castelo. "Ando em observação constante de há uns meses para cá. Há coisas que procurei identificar como os risos, os gestos das mãos. O que não foi preciso representar foi o amor que o Norman tem pelo Sir, gosto tanto do Ruy que isso não é preciso trabalhar".
O mais difícil nessa alternância de registos entre o cómico e o dramático da sua personagem é a cena final. Norman, que enquanto está dentro do teatro sente-se seguro e acredita que nada de mal lhe acontecerá, perde tudo. "É uma cena muito difícil e nem sempre consigo chegar lá", confessa o actor. "Parto todos os dias para a peça sem saber se consigo chegar ao fim e encontrar o caminho para essa emoção". Prefere, apesar de tudo, não jogar pelo seguro, e arriscar.
Tal como o Sir entra no palco para a 227ª representação de "O Rei Lear" sem se lembrar da primeira frase, também Virgílio Castelo entra em palco sem saber como chegará a essa cena final. "Ainda não consegui encontrar na minha memória afectiva os mecanismos que me permitam todos os dias chegar a esta tragédia, a este abandono em que o Norman fica".
Afinal, esta é uma história de teatro e não é preciso que as bombas caiam lá fora para os actores sentirem que aquela é sempre a primeira vez. E pode ser a última.