O director do Teatro Nacional D. Maria II, Diogo Infante, tomou conhecimento prévio dos ataques que iriam ser feitos ao encenador Ricardo Pais num dos espectáculos que programou para o fim-desemana passado no Festival ao Largo, em Lisboa, não os subscreve, mas optou por "não exercer qualquer acto de censura para com uma decisão que era artística".
Contactados pelo P2, os actores Diogo Dória e Miguel Guilherme e o argumentista Nuno Artur Silva assumem integralmente a responsabilidade pelo texto (que escreveram com Rita Blanco, também intérprete do espectáculo Recital e Tal, mas que o P2 não conseguiu ontem contactar, e com a argumentista Inês Fonseca Santos) e pelas críticas ao encenador e ex-director do Teatro Nacional de São João, no Porto. Ricardo Pais prefere "não dar importância nenhuma ao assunto", que considera "uma insignificância", mas deixa uma sugestão: "Será melhor perguntar ao ministro da Cultura [José António Pinto Ribeiro], que foi sócio das Produções Fictícias [a empresa de Nuno Artur Silva] e percebe melhor aquelas cabeças do que eu".
"Manifestei formalmente a minha consternação para com uma decisão que implica o Teatro Nacional [D. Maria II]", declarou Diogo Infante ao P2. "Quando programei o espectáculo não estava na expectativa de que fossem ofendidos terceiros. Mas não posso condicionar a criatividade dos intérpretes. Lamento, e já tive oportunidade de falar com o Ricardo Pais e de lhe manifestar solidariedade."
Opart "siderado"
No centro da polémica está o espectáculo apresentado nas noites de sexta-feira e sábado no largo em frente ao Teatro Nacional de São Carlos. Diogo Infante esclarece que "a responsabilidade moral, ética e artística é dos intérpretes e actores" e que quando foi informado do conteúdo do texto - a adaptação do Manifesto Anti- Dantas, de Almada Negreiros, para um texto anti-Ricardo Pais, nomeadamente na célebre frase "Morra o Dantas, morra! Pim" - era demasiado tarde para alterar a programação, entretanto anunciada já em conferência de imprensa.
A adaptação do manifesto visando Pais deixou os responsáveis do Opart (organismo que gere o São Carlos) "siderados", declarou, por seu lado, Carlos Vargas, um dos elementos da administração. "Não nos revemos de todo nessa abordagem. Para mim, Ricardo Pais é uma referência na cultura portuguesa." Vargas confirma que a decisão de manter o espectáculo foi tomada com Diogo Infante e nega qualquer ligação entre esta polémica e a que envolveu outro espectáculo programado também por Infante para o Festival ao Largo, a peça Amor, encenada por Marcos Barbosa, que foi primeiro cancelada e depois reprogramada. Não faria sentido fazer o Manifesto Anti-Dantas sem o actualizar, explica Diogo Dória. "Interrogámo-nos sobre qual seria o [Júlio] Dantas contemporâneo e chegámos unanimemente à conclusão de que seria Ricardo Pais, que tem a mesma pesporrência, a mesma relação com os dinheiros públicos, o pensar que estes podem ser usados de forma aleatória." Frisa, contudo, que "a situação foi muito pensada, houve avanços e recuos e a decisão não foi tomada de ânimo leve".
"Dizer mal pela frente"
Nuno Artur Silva concorda que "a melhor maneira de ler em público o Manifesto 100 anos depois era fazer com que ele tivesse o mesmo grau de provocação que o Almada lhe quis dar". Era fácil encontrar "os alvos do costume, fazer o anti- Sócrates, o anti-Santana [Lopes], mas preferimos procurar alguém do meio teatral". Para Miguel Guilherme, a escolha era óbvia, porque Pais representa tudo o que detesta no teatro "como homem e como criador". Além disso, afirma, a atitude teve um "valor facial" - ou seja, foi "dar a cara, dizendo mal pela frente, o que é raríssimo". Garante: "Não há aqui qualquer agenda política".
Nuno Carinhas, que substituiu Ricardo Pais na direcção artística do Teatro Nacional de São João, vê aqui "um equívoco grosseiro". "Se há alguém com quem o Ricardo Pais pudesse ser comparado era com o Almada e não com o Júlio Dantas, porque é uma figura de irreverência e não de alguém que está estabelecido." É por isso que acha que no espectáculo frente ao São Carlos - ao qual, frisa, não assistiu - terá havido "desonestidade intelectual" e um "facilitismo de crítica, que não era o que Almada teria na cabeça quando fez o manifesto".
Nuno Artur Silva e Diogo Dória garantem que não os move qualquer animosidade pessoal contra Ricardo Pais. "Isto não é uma vingançazinha", diz o actor. "Sempre achei que o Ricardo Pais era uma pessoa nefasta para o meio teatral, nunca vi nenhuma encenação dele que mereça ser lembrada." O actor recorda que Pais é signatário de um manifesto que critica o actual ministro da Cultura e indigna-se. "Quando passa um homem sério pelo ministério todos o acusam." Nega, no entanto, que as críticas a Pais sejam uma defesa de Pinto Ribeiro. "Repudio absolutamente isso." O que o move, diz, é uma profunda preocupação com "a situação em que se encontra o ensino artístico em Portugal".
Também Nuno Artur Silva (que esclarece que o texto não é das Produções Fictícias mas apenas dele e de Inês Fonseca Santos) rejeita as tentativas de ligar o caso a Pinto Ribeiro: "Não tem nada a ver com o ministro. Tenho uma vida para além de ser amigo pessoal do ministro da Cultura e há muitos anos que tomo posições públicas sobre cultura."