A verdadeira mística é a do futebol?

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Rainer Maria Rilke

Há hoje um abuso da palavra "mística", nota o teólogo Juan Martin Velasco. Uma curta viagem pelo fenómeno místico na linguagem e nas diferentes religiões.

A mística do Benfica ou do F.C. Porto tem alguma coisa a ver com o fenómeno religioso? Sim, há semelhanças sociológicas. Mas a coincidência fica por aí. O exemplo do futebol serve para dizer que o termo "mística" é hoje objecto de uso e abuso na linguagem corrente, como verifica Juan Martin Velasco. Teólogo espanhol e professor de Fenomenologia da Religião, autor de "El Fenómeno Místico - Estudio Comparado" (www.trotta.es), obra de 1999 que já é uma referência no tema, Velasco nota a polissemia contemporânea da palavra: ela designa hoje a "nebulosa" do "esotérico, oculto, maravilhoso, paranormal ou parapsíquico". Ou ainda o "compromisso total ao serviço de algo tomado por absoluto".

Quando se fala de mística, também se pensa em fenómenos como os estigmas ou o jejum. O teólogo diz que a ciência ainda não explica tudo, mas nem todos esses fenómenos terão causas sobrenaturais. Pode haver somatizações (a meditação sobre a Paixão de Cristo faria aparecer estigmas, por exemplo); mas também uma percepção intensa da presença de Deus.

Perante a multidão de sentidos, Velasco propõe uma redefinição da mística: "Experiências interiores, imediatas, fruitivas" num nível de consciência para lá da "experiência ordinária e objectiva, da união - qualquer que seja a forma em que se viva - do fundo do sujeito com o todo, o universo, o absoluto, o divino, Deus e o Espírito."

O místico, escreve Martin Velasco, "fala do Deus que se lhe deu como presente numa experiência". Esta conversa pode ter afinidades com a linguagem poética, tendo em conta "a função central do símbolo na linguagem mística" - chega a haver quem considere a poesia como um esboço profano da actividade mística.

Essa experiência de Deus é a característica essencial do fenómeno místico. Para São João da Cruz, a união com Deus é a última etapa do processo. E Mestre Echkart, do qual acabaram de sair os "Tratados e Sermões" (ed. Paulinas), dizia que "só desprendendo-se da própria experiência mística se consegue o fim a que a experiência mística está orientada que é o próprio Deus, Deus só, Deus todo".

Esse processo é um caminho interior e intenso. No seu "Retábulo de Natal", escreveu Luís Rosales: "De noite iremos, de noite,/ sem lua iremos, sem lua,/ que para encontrar a fonte/ só a sede nos ilumina."

Tal experiência atravessa a constelação das diferentes religiões. No Bhagavad-Guitá, obra sagrada do hinduísmo, lê-se (ed. Assírio & Alvim, 11ª lição, 54-55): "Só através duma exclusiva devoção/ é que é possível ver-Me (...)/ e, na verdade, conhecer-Me totalmente/ e unir-se a Mim... Quem me tem por supremo objectivo (...),/ livre d'apegos e sem ódio por ninguém,/ esse, vem até Mim..."

No budismo, a radicalidade e a "concentração no essencial - a salvação, a libertação - leva o Buda a uma inovação radical que comporta o silêncio sobre Deus". No Sermão de Benares ou das Quatro Verdades, lê-se: "Esta é, oh monges, a nobre verdade da cessação de toda a dor: a supressão completa desta sede, a sua destruição, abandonando-a, renunciando a ela, libertando-se e não sendo dela."

O taoísmo inclui a libertação pessoal, com mais um traço importante, nota Velasco: "O do serviço, compaixão e atenção aos demais, reservado em exclusivo, em muitas descrições excessivamente rígidas, à experiência mística" do judaísmo, cristianismo e islão.

No judaísmo, o teólogo não separa a dimensão profética, que reconhece Deus "na terra e no meio da vida", da mística, cujo centro é a "epifania de Deus". E cita exemplos de quem "realiza de forma inconsciente os rasgos da mais pura experiência mística": "Moisés que pede a Deus para ver o seu rosto; Elias, que após uma radical purificação descobre a sua presença no sussurro da brisa suave." Ou ainda Isaías, Job ou os salmistas...

Henri de Lubac, um dos maiores teólogos cristãos do século XX, dizia que a mística cristã "interioriza constantemente o Mistério, deve-lhe a sua vida e torna-o vivo". Fora desse Mistério, "a mística degrada-se em misticismo." A originalidade da experiência mística cristã, explica Velasco, é essa peculiar configuração do Mistério: um Deus pessoal, cujo mistério se encarna em Jesus Cristo, e que se desvela na história dos homens e a encaminha até si como o seu termo escatológico.

No islão, a mística confunde-se com o sufismo. A pobreza, o silêncio e a ascese para se desprender do que existe, concentrando-se em Deus, são essenciais. Djalal al Din Rumi, o mais importante poeta místico de língua persa (séc. XIII), escrevia: "Cada Alá! que tu gritas é o meu 'eis-me aqui' (...) e em cada oh! Senhor que proferes há cem vezes a resposta: eis-me aqui!, da minha parte." E noutro passo: "O que desejo dos jardins do paraíso/ não são os seus deleites./ O que desejo neles é ver [Deus]."

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