Egipto: Um regime envelhecido a caminhar para um futuro incerto

Foto
Manifestação no Cairo contra o bloqueio israelita em Gaza Asmaa Waguih/Reuters

É o único tabu da imprensa egípcia: os jornais no Cairo nunca mencionam o Presidente directamente quando criticam o regime. Podem repudiar as políticas do Governo, sublinhar os erros dos ministros, ou até revelar casos de corrupção de deputados. Mas o Presidente não pode ser atacado. Em vez de escrever Hosni Mubarak ou o Presidente, os jornais utilizam outros termos: o chefe, ou homem no topo ou Sahab el Karar, que em árabe significa "o decisor".

Em 27 anos ao comando do Egipto, desde o assassínio de Anwar Sadat em 1981, Mubarak transformou-se num faraó moderno. E se é verdade que o Governo foi eficaz no combate à oposição militarizada dos grupos islamistas que aterrorizaram o país nos anos 90, foi também responsável pela erosão contínua dos direitos civis e a asfixia dos grupos de oposição secular.

Segundo vários analistas, o regime continua entrincheirado. Mesmo a recente libertação de Ayman Nour, um advogado detido após concorrer à presidência em 2005, foi vista mais como um acenar cosmético ao Ocidente e à nova Administração americana de Barack Obama do que como um passo no sentido de reformas. O Egipto é hoje um país politicamente estagnado, com um líder envelhecido e um plano de sucessão incerto.

As eleições parlamentares de 2005, apresentadas como um sinal de abertura, revelaram vários elementos sobre o regime. Seguindo a constituição egípcia, o sistema judicial acompanhou o processo, mas mais de uma centena de juízes contestaram muitas irregularidades.

O Partido Democrático Nacional (PDM) de Mubarak só conseguiu 37 por cento dos votos, vergonhoso depois de anos a vociferar ter o apoio da população. Com 147 lugares, precisou de outros 166 parlamentares para assegurar a maioria.

Igualmente preocupante para a elite governante foi a Irmandade Muçulmana, que concorre com independentes, ter conseguido 88 dos 160 lugares a que concorreu. Impossibilitada de participar formalmente na política - a lei proíbe os partidos de cariz religioso - as eleições mostraram a extensão da sua base de apoio. "Permitiu que se promovessem", diz Nael Shama, comentador político do Cairo. "Mas o domínio do PDM continua estabelecido, na assembleia e na vida política."

O regime aprendeu com o susto. Após as eleições, aumentou a repressão à Irmandade, acusando-a de planear o regresso às armas. Alguns observadores notam que o grupo é parcialmente tolerado por servir de justificação para as medidas de segurança e para a repressão. Mas a verdade é que até movimentos sem fundamento religioso são acossados pelo aparelho de Estado.

"O Governo está preparado para usar as leis de emergência e os tribunais militares contra qualquer oposição, mesmo liberal e secular" afirma Kamel Helbawy, actual representante da Irmandade no Reino Unido.

Durante décadas, o grupo islamista criou uma rede de escolas, hospitais e instituições de apoio social, ocupando as lacunas deixadas por um serviço estatal insuficiente. Apesar de contar com apoio de largas franjas da sociedade, a Irmandade é vista com desconfiança pela sua inclinação religiosa e desvalorização das minorias. No ano passado, um membro, Abdel Mahmoud, foi banido após ter sugerido que a adesão ao Corão não deveria servir de base para a acção política. Num país pobre e cada vez mais islamizado, o grupo mantém-se fiel aos seus valores fundadores.

Em 2006, o Governo alterou as leis que regulamentam a aprovação de novos partidos, tornando impossível que os movimentos de oposição democrática liberal surgidos nos últimos anos se transformem em partidos com a possibilidade de disputar o poder. Outro desafio legislativo: o Governo apagou da Constituição a lei que garantia a supervisão directa de eleições por juízes. Um mau sinal para 2010 e 2011, quando se disputarão novas eleições parlamentares e presidenciais.

O bloqueio a Gaza

As fraquezas do regime, e o declínio da posição tradicionalmente influente do Egipto no mundo árabe, vieram à superfície durante a última ofensiva militar de Israel na Faixa de Gaza. Enquanto os Governos da região contestavam o uso exagerado de força e o número de baixas civis, o Egipto manteve a fronteira fechada, não permitindo a saída dos feridos e dificultando o envio de alimentos.

Para muitos egípcios, o fecho da fronteira e a incapacidade de conseguir um cessar-fogo durante os 22 dias de guerra mostraram a debilidade do regime e um certo alinhamento com Israel e com os EUA. Foi o desmoronar da posição de que o Egipto gozara no Médio Oriente. Décadas depois do pan-arabismo de Gamal Abdel Nasser, o Egipto mostrou-se indiferente aos problemas dos palestinianos.

"O problema do Governo é ser demasiado cauteloso, não está disposto a correr riscos para proteger o interesse nacional", explica Dina Shehata, do Al-Ahram Centre for Strategic and Political Studies. "O regime está a envelhecer, vê tudo atravês da perspectiva da segurança, vive acossado pela ameaça islamista."

Dentro do Egipto, os grupos terroristas foram erradicados com detenções em massa e tortura. Durante anos, a luta entre a polícia secreta e os grupos armados desencadeou atentados, num círculo violento de vingança. Mubarak conseguiu derrotar o terror. Mas a herança desses tempos existe ainda na vida: como as escutas telefónicas de potenciais opositores ou a Lei de Emergência que permite às autoridades entrar e revistar qualquer casa a qualquer momento.

O problema da corrupção

Para além das medidas de segurança, os egípcios habituaram-se a andar com notas pequenas no bolso. Servem para superar obstáculos no dia-a-dia; seja para dar dez libras egípcias (1,3 euros) ao soldado de Kalashnikov ao ombro de guarda na esquina mas que também arruma carros, ou pagar vinte à enfermeira no hospital para saltar alguns lugares na ordem de chegada. O sistema do baksheesh está em todo o lado. No topo da pirâmide, a classe governante é acusada de utilizar contactos políticos para interesses económicos particulares.

Apesar de tudo, há sucessos. Empregando ministros do sector privado, o Governo tem conseguido liberalizar a economia com uma mão, mantendo a outra firmemente agarrada ao poder. Nos últimos três anos a economia cresceu mais de 7 por cento.

Mas a pobreza continua a ser um problema no país com 80 milhões. Um relatório publicado em Julho de 2008 pelo International Crisis Group alertava para o clima de contestação social. Isto foi antes da actual crise económica. Com os rendimentos do turismo e do Canal do Suez (duas principais fontes de receitas) em decréscimo acentuado, o Governo terá menos espaço de manobra para atenuar as dificuldades dos mais pobres com subsídios.

A corrupção é apontada como um dos principais problemas, e a classe política é vista com desconfiança. Uma imprensa com liberdades limitadas tem tido um papel importante na mobilização. Desde 2003, quando apareceu o primeiro diário independente em Árabe, o "Al Masry Al Youm", a imprensa egípcia conta com algum espaço de manobra. Desde que não se ultrapassem certos limites: o Presidente, os seus familiares e o círculo próximo do poder são intocáveis. Um crime denominado Desrespeitar a Imagem do Egipto é muitas vezes usado pelos tribunais para multar ou prender jornalistas.

"Estamos numa fase de transição", explica Rania Al Malky, directora do "Daily News Egypt", um diário independente em inglês, sediado no Cairo. "Os jornalistas têm mais liberdade, mas ao mesmo tempo, os limites estão também muito mais bem definidos."

Fora do papel, uma geração de bloggers está a galvanizar o apoio das camadas jovens. No Facebook, o grupo Movimento de Juventude 6 de Abril, com mais de 70 mil membros, organizou uma manifestação em 2008. Desde então, membros proeminentes têm visto a pressão governamental aumentar. Num país onde as reuniões políticas com mais de cinco pessoas são proibidas, é difícil transformar a oposição no mundo digital em mobilização social no terreno.

Segundo um relatório dos Repórteres Sem Fronteiras, em 2008 o Governo prendeu 500 bloggers, alguns durante meses. Mais sinais de que a estrutura de segurança vigia a Internet? Basta aceder ao Youtube em busca de vídeos com expressões do tipo "Mubarak Democracy" e ver o que acontece: após algumas tentativas a ligação é interrompida durante uma meia hora.

A questão da sucessão também preocupa muitos. Desde que chegou ao poder, Mubarak nunca nomeou um "vice". Aos 81 anos, o velho piloto da Força Aérea não parece querer comprometer-se com um plano de sucessão. Há sinais: o seu filho, Gamal, é apontado como potencial candidato, apesar de não deter qualquer posto formal no actual Governo. No início do ano, foi Gamal que visitou Washington para se encontrar com membros da nova Administração e a viagem foi vista como uma espécie de teste de aceitação da hereditariedade do poder.

Suleiman e o Exército

Embora Gamal seja uma escolha desejada pelo partido e tolerada pela comunidade económica devido à sua experiência no sector privado, o apoio do Exército não é certo.

Outro cenário pós-Mubarak seria a transferência ou a tomada do poder por uma junta militar (semelhante ao que ocorreu em 1952 com Nasser) - no Egipto, controlar o Exército é essencial. Neste contexto, o general Omar Suleiman, chefe dos serviços secretos e um dos aliados mais próximos do Presidente, é relevante. Foi Suleiman que organizou a luta armada contra os islamistas e vários analistas consideram-no o homem mais poderoso depois de Mubarak. Ninguém conhece melhor as pressões internas ou a estrutura do regime.

"Suleiman teria o apoio do aparelho de segurança e é internacionalmente visto como um diplomata astuto", opina Nael Shama. "Mas ele nasceu em 1935, e não parece ter ambições políticas. É exactamente por isso que o Presidente confia tanto nele."

Uma transição democrática parece improvável, e o clima de incerteza assombra o país: caso Mubarak desaparecesse repentinamente, não seria impossível assistir à subida de um general desconhecido ou a um período de caos e instabilidade.

"Os partidos da oposição estão divididos e dificilmente conseguirão disputar o poder em 2011", explica Shama. Para isso seria necessário que uma coligação que os incluísse a todos apoiasse um candidato de consenso nacional. Potenciais candidatos civis não faltariam: Mohamad ElBaradei, actual chefe da Agência Internacional de Energia Atómica, ou Amr Moussa, da Liga Árabe, teriam apoio. Com as barreiras legais e a capacidade comprovada do regime para punir opositores, o mais provável é que tão cedo não apareça uma força de oposição suficientemente consolidada.

Por enquanto, o monopólio do poder parece destinado a manter-se nas mãos do PND. Mas a tensão nas margens do Nilo promete aumentar.

Artigo publicado na edição impressa do Público
Sugerir correcção
Comentar