Foi o inferno em Cannes com "Antichrist", de Lars von Trier

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"Antichrist", de Lars von Trier

"Sou o maior cineasta do mundo", disse Lars von Trier na conferência de imprensa de "Antichrist". Aligeirou o clima, mas não houve reconciliação.

A versão de Lars von Trier do "Eu não sou um homem, eu sou Eric Cantona" é: "Sou o maior cineasta do mundo". A coisa começou a ficar preta, no início da conferência de imprensa da equipa de "Antichrist" (Von Trier e os actores Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg), quando um jornalista britânico gritou que Von Trier tinha a obrigação, uma vez que estava num festival de cinema, de explicar o filme, de justificar por que o tinha feito - o que se queria saber: porquê o sexo explícito, porquê a cena em que a personagem de Gainsbourg chega à auto-mutilação do clitóris, porque é que a personagem de Dafoe, agredida sexualmente, ejacula sangue, e tudo isso em grande plano?. Lars, que com os anos foi perdendo o visual de punk "skinhead" e ganhando o peso de um mestre-escola, é uma figura frágil que Cannes tem trazido debaixo do braço. Acaba de sair de uma depressão, o filme foi uma rotina imposta que serviu de terapia. Mas ainda adora perturbar-se com uma boa confrontação. E o sentido de humor é muito especial. Não tinha nada a explicar. "Lamento dizer mas vocês todos [espectadores do filme] é que são meus convidados. Não é ao contrário". Depois cedeu: talvez tivesse sido com a ajuda da "mão de Deus" que filmou o que filmou. Acabou por descontrair aquela de ser "o maior cineasta do mundo". E foi aligeirando o clima, porque Dafoe e Gainsbourg estavam obviamente orgulhosos dos riscos que correram, são destemidos e adoram o dinamarquês de mãos trémulas.

Mas não há reconciliação. "Antichrist" começou a ser detestado no primeiro minuto - o nome de Lars von Trier em letras gigantes a ocuparem o genérico inicial - e foi assim até ao fim, com a dedicatória a Andrei Tarkovsky ("este sim, um verdadeiro Deus", disse Lars), que foi lida como um gesto de arrogância do realizador. Entre uma e outra coisa, vê-se o regresso de Lars ao formalismo dos primeiros filmes, deixando para trás o puritanismo Dogma em relação à manipulação da luz e do som. Para contar uma história que começa como um filme de Ingmar Bergman - vá lá, "Cenas da Vida Conjugal" -, depois passa a "O Exorcista" e tem um final à Dreyer. (Alguém ainda tentou perguntar se o lado filme de terror de "Antichrist" não passava também por Dario Argento, mas Lars primeiro fez de conta que não ouviu e depois fez de conta que não sabia quem era).

Sexo e culpa levam o casal interpretado por Dafoe e Gainsbourg a isolarem-se numa casa, num bosque (apropriadamente chamado Eden). Acabaram de perder o filho - quando estavam a praticar sexo - e ali o confronto entre ambos abrirá as portas do inferno. Está do lado dela, da mulher, a natureza satânica. E está com Lars um sentido de exposição e provocação que é quase infantil - fazendo ele filmes para adultos. Tal como tem necessidade de se torturar ao dizer publicamente que aqueles que foram os seus deuses, Tarkovsky ou Bergman, nunca reconheceram aquilo que ele fez, também estica os limites de figuração com um impulso de exposição e de provocação que até podem ser tocantes. Mas às vezes resume-se a auto-flagelação inconsequente. Como experiência, e depois de se tirar do caminho a espuma do eventual choque, "Antichrist" é um filme bastante frígido, uma colecção de situações-limite, como um "best of" de recordes, e de incontinência onírica não poucas vezes banal (apesar da opulência visual). Estamos impedidos de participar deles emocionalmente, separados pela câmara, pela fotografia, pela montagem, pelos riscos dos actores, que anunciam sempre: "proeza". Mas o filtro instala-se desde o início, no segmento "bergmaniano", por exemplo, em que Lars está sempre a colocar-se entre as personagens de Dafoe e Gainsbourg e o espectador. Inadvertidamente destruindo com a câmara e com a montagem aquilo que era suposto erigir.

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