Kenneth Anger corrompe mas ilumina

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"Lucifer Rising" (1980)

Com o ciclo que hoje abre na Cinemateca começa um programa de filmes, concertos, performances, conferências e exposição, em Lisboa e Porto, sobre o mago do underground. Kenneth Anger, 82 anos, está em Portugal

Tem Lucifer tatuado no peito e um fascínio irresistível por uniformes. Kenneth Anger, uma das figuras maiores do cinema independente, underground, norte-americano, é o protagonista de um ciclo de filmes, concertos, performances, conferências, edições de livros e uma exposição, que se inicia, segunda-feira, dia 4, na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa. O acontecimento, que prossegue nos dias seguintes na Fundação de Serralves, no Porto, conta com a presença do realizador, personagem mítica da contracultura, autor dos dois volumes "Hollywood Babylon" - narra histórias sórdidas das estrelas da indústria cinematográfica -, e adepto confesso do ocultista Aleister Crowley, omnipresente em muitas das suas obras. A iniciativa é comissariada por Natxo Checa, da ZDB, espaço onde será apresentada, a partir de 8 de Maio, a mostra colectiva "Estrela Brilhante da Manhã", título que evoca uma passagem de "A Hora do Diabo", de Fernando Pessoa, assim iniciada: "Corrompo mas ilumino."
O ciclo arranca com uma retrospectiva da obra cinematográfica de Anger (Santa Mónica, Califórnia, 1927), uma sessão formada por alguns dos seus filmes seminais, como o experimental "Fireworks" (1947), realizado em Los Angeles, aos 17 anos. Nesta película a preto-e-branco, o fascínio por uniformes, neste caso o de marinheiros, torna-se um dos temas centrais do seu percurso, isto numa época em que, recorde-se, a homossexualidade era ilegal. Com esta curta, o realizador, protagonista central de uma história violenta e poética, com contornos S&M - um "sonho de um sonho" que culmina num fálico fogo-de-artifício -, venceu, em 1949, o Prémio da Obra Poética do Festival do Filme Maldito de Biarritz, presidido por Jean Cocteau. O escritor francês enviou uma carta elogiosa ao cineasta, que decidiu viajar para França, onde viveria durante mais de dez anos, tendo sido assistente de Henri Langlois, na Cinemateca em Paris.

No primeiro dia do programa, na Cinemateca de Lisboa, será ainda possível assistir a "Inauguration of the Pleasure Dome" (1954-1956), "Invocation of My Demon Brother" (1969), "Lucifer Rising" (1980) e "Ich Will!" (2008) - a sessão é repetida no dia seguinte, em Serralves. Os filmes realizados até ao início dos anos 1980 constituem um corpo de trabalho atravessado por diversos temas, como a magia - "magick", na grafia de Crowley -, o paranormal, o psicadelismo, associado ao consumo de LSD, a homossexualidade e o culto de Lúcifer, este entendido não enquanto representante do mal, mas antes como figura luminosa, alucinante: o deus da luz. As diferentes obras estão associadas a inúmeras histórias, muitas delas obscuras, como a do roubo, em 1967, do material filmado de "Lucifer Rising" - a película só seria estreada treze anos depois -, por Bobby Beausoleil, ex-guitarrista dos The Grass Roots, num episódio rocambolesco que iria terminar com a associação deste à "família" de Charles Manson e a posterior acusação de ter assassinado, em 1969, o hippie, professor de piano e budista zen Gary Hinman, cumprindo ainda hoje a sua pena na prisão, onde acabou por escrever a banda sonora de "Lucifer Rising"...

"Invocation of My Demon Brother" tem banda sonora de Mick Jagger, composta com um sintetizador moog adquirido na época pelo vocalista dos Stones  - há uma outra versão, mais recente, com música dos Electrophilia, grupo de noise psicadélico formada por dois artistas, o já falecido Steven Parrino e Jutta Koether.
"Inauguration of the Pleasure Dome", título tirado do poema "Kublai Khan", de Colerigde, é dedicado a Aleister Crowley e conta, entre os intérpretes, com Anaïs Nin e com o cineasta Curtis Harrington - Anger diz ter-se inspirado para este filme, atravessado pela Missa Glagolítica, do compositor checo Leo\u0161 Janáek, numa festa temática de Halloween, intitulada "come as your madness." O realizador propôs ainda, em 1966, uma "Sacred Mushroom Edition" desta obra, tendo aparecido, no início dos anos 1970, algumas cópias com a canção "Can't Get It Out of My Head", dos Electric Light Orchestra. O mais recente e polémico "Ich Will!" coloca em paralelo a juventude hitleriana e um outro movimento, romântico, ligado à juventude alemã de finais do século XIX, o Wandervogel (ave migratória). Não se deve esquecer que para Anger "as duas imagens mais populares do século XX são o rosto do Mickey Mouse e a suástica."

Heranças

Se a influência de Anger se faz sentir, hoje, em alguns artistas, músicos e cineastas contemporâneos, ela não deve separada da herança deixada por Crowley (1875-1947), cada vez mais figura emblemática na cultura actual. O interesse por esta enigmática personagem - com uma biografia que se cruza com a de Fernando Pessoa, nomadamente no célebre episódio da Boca do Inferno, quando o mago inglês simulou o seu suicídio - é visível no número crescente de discos, livros e exposições dedicadas não só ao si, mas também a toda uma série de artistas e personagens influenciados pela sua filosofia thelêmica - Jimmy Page, dos Led Zeppelin, chegou a comprar uma das casas do mago, onde eram praticados rituais mágicos, a setecentista Boleskine House, nas margens do Loch Ness, Escócia. Há outros nomes que têm manifestado profundo interesse pelo pensamento de Crowley, como John Zorn - que em sucessivos álbuns lhe tem prestado homenagem: "I.A.O." (2002), dedicado também a Anger, "Magick" (2004),"Rituals" (2005), "Moonchild" (2006), etc. -, David Tibet, dos Current 93, ou Genesis P-Orridge, que escreve uma das introduções (a outra é de Robert Antom Wilson) a "Portable Darkness", uma colectânea de textos de Crowley.

Nas artes visuais têm também sido muitos os autores que demonstram um crescente interesse por Crowley, podendo afirmar-se que há um ambiente criativo particular relacionado com este universo "mágicko". A própria obra de Anger está a ser revelada numa exposição actualmente a decorrer no P.S.1, em Long Island, Nova Iorque. Outros lugares têm servido para divulgar este movimento que mistura "espectáculo e vaidades, decibéis e rezas, high-tech e caos", como se pode ler num desdobrável do Palais de Tokyo, em Paris, actualmente dirigido pelo suíço Marc-Olivier Wahler, antigo responsável pelo Swiss Institut nova-iorquino. Um certo fascínio pelas subculturas das décadas de 60 e 70 do século passado acompanhado por uma reciclagem estética próxima quer do DIY ("Do it yourself"), quer de um certo psicadelismo noise, quer ainda de todo um imaginário associado a certos rituais e práticas esotéricas, tem feito emergir uma geração de artistas com energia intensa: Banks Violette, Jutta Koether, Ulla von Bradenburg, Mai-Thu Perret, Gosha Makuga, Amy Granat, entre outros - lembre-se ainda a colectiva "A Grande Transformação. Arte e Magia Táctica", apresentada recentemente no Marco, em Vigo, com comissariado de Chus Martínez.

A colectiva "Estrela Brilhante da Manhã", a ser inaugurada dia 8 na ZDB, inclui trabalhos de John Bock, Manuel Ocampo, Jonathan Meese, Janis Varelas, Joachim Koester, Alexandre Estrela, Makus Selg, António Poppe, Tamar Guimarães e Kenneth Anger, de quem se apresenta a última curta, "Brush of Baphomet" (2009), inspirada na recente descoberta de pinturas de Aleister Crowley, sendo que alguns dos artistas presentes na exposição têm desenvolvido trabalhos relacionados com a magia, as actividades mediúnicas, os fenómenos ópticos e a performance.
O ciclo inclui ainda conferências pelo historiador das religiões italiano Marco Pasi e concertos, destacando-se os dos Technicolor Skull (Serralves, dia 6; ZDB, dia 9), um duo formado por Brian Butler (guitarra eléctrica) e pelo próprio Anger (theremin) - o espectáculo conta ainda com uma homenagem ao realizador pelos Mécanosphère, com o convidado Mark Stewart, um dos fundadores da banda pós-punk The Pop Group -, o dos Larsen+Little Annie (Serralves, dia 13; ZDB, dia 15) e o da artista transexual Baby Dee, que apresenta o seu último álbum, "Safe Inside the Day", dia 4 de Junho, na ZDB. Uma segunda sessão de cinema, onde serão exibidos os filmes "Puce Moment" (1949), "Rabbit's Moon" (1950), "Eaux d'Artifice" (1953), "Scorpio Rising" (1964) e "Kustom Kar Kommandos" (1965), está ainda agendada para dia 7, na Cinemateca.

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