Sinais do Futuro

Se houvesse um equivalente cinematográfico do "mash-up" musical o novo filme do australiano Alex Proyas seria o mais forte candidato que vimos até hoje

Se houvesse um equivalente cinematográfico do "mash-up" musical - a colisão milimetricamente elaborada entre obras pré-existentes que à partida não têm nada a ver umas com as outras e que se transformam num híbrido mutante - o novo filme do australiano Alex Proyas seria o mais forte candidato que vimos até hoje.


Filme-catástrofe, mistério sobrenatural, série B dos anos 1950, parábola religiosa, fábula ecológica, filme de terror - e a lista não se encerra por aqui, com citações de "Encontros Imediatos do Terceiro Grau" de Spielberg (1977) e, sobretudo, dos "Sinais" de M. Night Shyamalan (2002), do qual o filme pode ser visto como uma "remake" mais catolicista. Mas enquadra-se também na recente vaga de ficções apocalípticas do cinema americano - do "Eu Sou a Lenda" (Francis Lawrence, 2007) com Will Smith, ao "remake" de "O Dia em que a Terra Parou" por Scott Derrickson (2008) -, reflectindo, como qualquer bom filme de género, as tensões do presente. E apresenta também sinais de pertencer à tendência religiosa que algumas grandes produções recentes têm mostrado, dentro do eterno dilema fé/razão, ciência/ religião, que Shyamalan trabalhava de modo mais ambíguo em "Sinais" mas Proyas torna demasiado explícito no seu filme.

E, contudo, pelo meio disto tudo, "Sinais do Futuro" encaixa na perfeição na obra do realizador australiano, cujos filmes anteriores - de "O Corvo" (1994) a "Eu, Robot" (2004), passando pelo seminal "Cidade Misteriosa" (1997) - sempre falaram, de modo visualmente estonteante, do momento em que um homem se confronta com a compreensão de que o mundo tal como ele o conhecia acabou e que é preciso mudar com os tempos. Vai um pequeno passo daí a um thriller apocalíptico sobre o fim do mundo (originalmente desenvolvido por Richard Kelly, o realizador de "Donnie Darko") - tal como previsto por uma miúda perturbada que, há 50 anos, enterrou uma lista aparentemente aleatória de números, revelados hoje a um astrofísico viúvo como uma série sequencial de datas, coordenadas e vítimas de todos os principais desastres da história da humanidade.

Mas o debate ciência/religião, fé/ razão, determinismo/aleatoriedade que o filme parece querer lançar numa primeira metade gerida com destreza e tensão por Proyas dilui-se à medida em que a história não hesita em abandonar a ambiguidade para "fechar" de modo perfeitamente inequívoco como uma determinista e resignada alegoria de catequese, apenas sublinhada pela tendência "torture porn" em versão filme-catástrofe dos grandes "tours de force" de efeitos visuais (extraordinariamente realizados mas que abusam desnecessariamente do pormenor gráfico).

Mas há quanto tempo não víamos um objecto tão singular, que quer ser um grande entretenimento de Hollywood sobre o fim do mundo, que dá corda à tensão até quase se tornar claustrofobicamente desesperado e depois quer dar a volta com uma solução graciosamente sacrificial que nem sequer satisfaz o espectador? Gostese ou odeie-se - e nós não gostamos, mas não conseguimos odiá-lo - filmes esquizofrénicos e inclassificáveis como "Sinais do Futuro", que têm qualquer coisa de sem-abrigo que flutua entre a lucidez e a alucinação, filmes que "só vistos", aparecem muito de longe em longe. O último de que nos lembramos é (o incomensuravelmente superior) "O Último Capítulo", de Darren Aronofsky. E isso é suficiente para não o descartarmos completamente.

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