Bach, O compositor omnipresente

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A obra de Bach acompanha todas as etapas de formação da maioria dos músicos. ENRIC VIVES-RUBIO

Sobre a importância da música de J. S. Bach (1685-1750) e da sua herança na história da música já se escreveram milhares de páginas, mas o assunto permanece inesgotável.

De forma directa ou indirecta, Bach parece estar em todo o lado, continuando a ser um mestre com discípulos espalhados pelos mais diversos géneros musicais, "de Mozart a Jethro Tull, passando pelo jazz e pela música contemporânea", lembrou o compositor João Madureira ao P2 a propósito da terceira edição dos Dias da Música, que decorre entre hoje e domingo no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, e que tem como tema A Herança de Bach.

"Poucos são os compositores que, em pleno século XXI, continuam a demonstrar este potencial de renovação e inspiração", diz o maestro Cesário Costa, apresentando como exemplo o trabalho do pianista de jazz e compositor Jacques Loussier (que vai comemorar no festival do CCB os 50 anos do disco que o tornou famoso: Play Bach) ou as famosas Bachianas Brasileiras, de Villa-Lobos. A universalidade de Bach não conhece barreiras estéticas pelo que uma tal temática permite um programa onde cabe quase tudo e a reunião de músicos de diferentes quadrantes. O que pensam eles da herança de Bach? E de que forma ela se reflecte no dia-a-dia da sua profissão?

Uma imensa dívida

O P2 recolheu depoimentos de intérpretes e compositores e o sentimento de uma imensa dívida para com Bach foi a tónica do discurso. Falam-nos de encantamento e espiritualidade, mas também da vertente científica e intelectual e da humildade necessária para abordar a sua obra.

"Ao balizar com tanta perfeição as formas do seu estilo, Bach abriu um universo de possibilidades para os que vieram depois e espalhou elementos de sua musicalidade em todos os recantos da música ocidental. Mesmo que não se esteja tocando especificamente nada de sua imensa obra, Bach está sempre presente", diz Henrique Cazes, intérprete de cavaquinho e director musical da Camerata Brasil, agrupamento que em 1999 lançou com grande sucesso o CD Bach no Brasil, que pretende mostrar as afinidades entre a música barroca e o chorinho. "Ele demonstrou na prática quais eram os recursos da música feita no sistema temperado de forma absolutamente artística e não apenas científica. O Cravo Bem Temperado ou da Arte da Fuga poderiam ser apenas exercícios para provar teses, se não fizessem parte da obra de um génio."

O músico brasileiro define Bach como um "operário da música" que "trabalhou sempre com capricho". Se a orquestra era melhor, explica Cazes, ele explorava-a mais, se era mais modesta, escondia as suas deficiências através do arranjo. "Essa atitude é um modelo a seguir, dando valor a ter trabalho e o realizando da melhor forma possível."

Já alguém disse que, se Bach tivesse vivido no século XX, seria músico de jazz. Também neste universo a sua herança tem sido forte. Músicos como Jacques Loussier, Uri Caine, Mário Laginha, Bernardo Sassetti, João Paulo Esteves da Silva, Carlos Bica e Carlos Barreto mostrarão nestes Dias da Música algumas facetas desse encontro fecundo. António Pinho Vargas, que tem carreira no jazz e na música erudita, refere que "os músicos de jazz são mais livres, menos pressionados pela filosofia da história que esmaga os professores de composição e os críticos e, por isso, usam mais facilmente Bach".

Bela e assustadora

O pianista João Paulo Esteves da Silva, cuja actividade contempla o jazz, a música popular portuguesa e a clássica, considera a música de Bach extremamente bela e assustadora. "Não é a beleza que me assusta, mas a mestria, o domínio da matéria musical, a perfeição técnica que roça o monstruoso", precisa. "Espanta-me que um tal domínio, uma tal força intelectual possam deixar lugar à inspiração e à ternura, coisas frágeis que o pensamento matemático parece gostar de destruir." Salienta ainda "a força rítmica, a corporalidade, o convite à dança, mesmo quando se trata de música sacra ou espiritual" e diz conviver diariamente com Bach "na esperança de aprender alguma coisa".

Pinho Vargas também não passa um dia sem tocar Bach. "Andriessen dizia que começava o dia a tocar Bach para aquecer os motores do compositor. Eu diria que começo por aquecer o corpo: o prazer físico (e mental) é muito diferente daquele que se tem, por exemplo, a tocar Chopin. Mas há um lado que se tornou difícil. Tudo aquilo que é muito forte tem um peso extraordinário. Há uma espécie de filtro à sua volta - e da música barroca em geral - através do qual só tem passado aquilo que é 'desfigurado' pela abstracção." O compositor explica que os modernos têm sublinhado sobretudo "a maravilhosa capacidade de, a partir de uma célula ou de um tema, Bach conseguir compor peças de longa duração" como a Arte da Fuga. "Este lado da herança foi visto num elevado grau de abstracção, mas prefiro ver tudo aquilo que não deriva directamente dela." E dá um exemplo: "Nas Variações Goldberg há cânones à sétima, à nona, etc. Esses cânones são a duas vozes. Mas há uma terceira voz livre que se articula com as outras duas. Há mais mistério na voz livre do que nas restantes."

A António Pinho Vargas e João Madureira, o CCB fez duas encomendas ambiciosas. Ao primeiro coube a composição de um segundo andamento para o Concerto Brandeburguês n.º 3, peça que o compositor intitulou como An impossible task. O segundo aventurou-se numa recomposição de A Arte da Fuga. Para Madureira a universalidade de Bach para além de todas as barreiras estéticas é o seu maior legado. Na sua actividade de compositor, Bach influencia-o do ponto de vista técnico pela "conciliação entre os aspectos verticais e horizontais da música: o contraponto harmónico". Num plano mais global salienta a "diversidade de uma produção musical que abraça vários paradigmas" e a noção de "figura" como base do discurso: "A enorme organicidade com que a sua música, de uma forma arborescente, se multiplica e nos invade."

Os intérpretes

Aos intérpretes, a música de Bach coloca outras questões. Massimo Mazzeo, violetista e fundador da orquestra barroca Divino Sospiro, sente-se algo intimidado pela grandeza do compositor. "A minha aproximação a Bach tem sempre sido difícil. Hoje percebo que esta dificuldade teve origem na enorme intimidação e respeito pela obra de um homem único e irrepetível." Sublinha "a componente filosófica e científica e o imenso amor que Bach tinha pela sua profissão como aspectos cruciais e como "um exemplo a seguir" mas, "para ser honesto", não acredita que o compositor alemão influencie directamente o seu quotidiano.

Para o cravista Kenneth Weiss tocar Bach é "um desafio enriquecedor mas também uma prova de humildade", pois "a disciplina requerida para interpretar bem as suas obras é uma lição em si própria". Em Bach fascina-o "a completa compreensão das emoções humanas", opinião que é partilhada por Simone Dinnerstein. "O modo como a sua música continua a falar-nos de uma forma tão íntima e poderosa merece reflexão e reconhecimento eterno", diz a pianista.

A obra de Bach acompanha todas as etapas de formação da maioria dos músicos e Cesário Costa não foi excepção. Enquanto estudante de piano, descobriu a música para tecla (O Cravo Bem Temperado, as Variações Goldberg, as Partitas). Depois a música coral e instrumental (a Missa em Si menor, as Paixões, os Brandeburgueses) e as fascinantes Suites para violoncelo solo, conta o maestro. "O estudo deste vasto repertório permitiu-me descobrir que a música pode ao mesmo tempo conter uma grande simplicidade e uma grande profundidade emocional. Este princípio fundamental tem inspirado sempre o meu trabalho como maestro."

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