Romance fugaz com questões raciais em fundo

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"Medicine for Melancholy", de Barry Jenkins

"Medicine for Melancholy" é um dos melhores filmes que o Indie apresenta. Primeira exibição já na sexta-feira.

Micah e Joanne acordam juntos numa cama alheia, depois de uma noite de festa em casa de um amigo. Estão meio encavacados e só quando saem se apresentam; ele está embeiçado por ela, mas ela quase não lhe fala. Tomam o pequeno-almoço juntos, ele deixa-a à esquina da casa dela de táxi, e depois percebe que ela se esqueceu da carteira. É o pretexto perfeito para ir à procura dela.

Há qualquer coisa que nos lembra "Antes do Amanhecer", de Richard Linklater, no dispositivo que Barry Jenkins concebeu para a sua estreia na longa-metragem: um homem e uma mulher que se encontram por acaso e passam um dia juntos durante o qual se seduzem mutuamente. Em vez de Viena, estamos em São Francisco, e a imagem foi descolorida até um preto e branco quase sépia que deixa entrar traços pontuais de cores desmaiadas; há um travo da frescura inicial da nouvelle vague francesa, há uma vénia a Barbara Loden.

O que há, também, é uma interligação deste romance fugaz com questões raciais e sociais, numa São Francisco onde os afro-americanos são uma minoria e o centro da cidade se despovoa da habitação social, chutada para os subúrbios pelos preços em alta. Para Joanne, que vive confortavelmente com um namorado galerista, a cor da pele não é importante. Mas Micah, que arrenda um pequeno apartamento no centro da cidade e está a recuperar de um romance que parece ter acabado mal, assume a sua identidade racial e irrita-se pela vida cultural e social da cidade ser tão "branco-cêntrica".

Há, obviamente, uma ironia enorme: "Medicine for Melancholy" é um filme propositadamente "descolorido", na medida em que a cor da pele é diluída na imagem, em que não há nada de especificamente "negro" neste romance. Jenkins levanta as questões, mas não faz delas (longe disso) o centro do seu filme; deixa-as ali a macerar ao mesmo tempo que se pergunta (e nos pergunta) se isso é realmente assim tão importante, e conduz-nos por um dia preguiçoso e irrepetível pelas ruas da cidade, durante as quais Micah e Joanne se seduzem, se descobrem, se revelam, se irritam, se divertem, num exercício de leveza onde a cidade se torna numa personagem a tempo inteiro.

É nessa elegância com que conjuga o pessoal e o social, o formalismo e a narrativa, as influências e a personalidade, que "Medicine for Melancholy" se ganha como um dos melhores filmes que o IndieLisboa apresenta este ano, em qualquer das secções. E é inexplicável como é que "Medicine for Melancholy" não está na selecção oficial quando é francamente superior a muitas das propostas apresentadas em competição este ano.

"Medicine for Melancholy", de Barry Jenkins, com Wyatt Cenac, Tracey Heggins

São Jorge 3, sexta 24 às 16h15 e sexta 1 às 23h45

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