O perigoso jogo da menina Júlia e do criado João

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"Menina Júlia", de Strindberg, mostra como é preciso muito pouco para que o poder mude de mãos. E depois volte a mudar. E mude ainda outra vez. Neste jogo de sedução, encenado por Rui Mendes, ninguém é completamente vítima e ninguém é completamente culpado.

O poder dos outros sobre nós não depende da classe social ou do sexo - depende sobretudo do momento em que a vida deles se cruza com a nossa. A menina Júlia não sabia disso. Mas descobriu.

Quando "Menina Júlia", a peça de August Strindberg - em cena no Teatro Nacional D. Maria II, com encenação de Rui Mendes e Beatriz Batarda no papel de Júlia - começa, é a menina, filha do conde e senhora da casa, quem está na posição dominante. É ela, que na noite de São João decidiu não acompanhar o pai e ficar em casa a dançar com os empregados, quem pode dar as ordens. É a ela que João, o chefe dos criados (interpretado por Albano Jerónimo), tem que obedecer.

João e a namorada, a cozinheira Cristina (Isabel Abreu), empertigam-se, endireitam as costas, colocam-se em sentido automaticamente quando a menina Júlia entra na cozinha, cenário de toda a peça (a cenografia é do pintor Manuel Amado).

Mas os acontecimentos das horas seguintes vão alterar, várias vezes, os equilíbrios de poder. Nada é garantido, o que se tem num momento pode perder-se no seguinte; o que parece um flirt ingénuo de uma menina mimada no princípio, pode ter-se transformado numa tragédia quando a madrugada chegar.

"Estas são personagens instáveis, como todos nós, e mudam constantemente", diz Rui Mendes. "Nunca sabemos onde está a inocência e onde está a culpa, onde está a agressividade e onde está o medo, a fuga. É por isso que esta é uma peça que será sempre actual enquanto houver seres humanos."

Apesar de ter sido escrita em 1888 e de ter na base uma questão de classes (que Strindberg, filho de um aristocrata falido e de uma antiga empregada doméstica, conhecia bem), "Menina Júlia" é muito mais do que a história do criado que sonha ascender e da filha do conde atraída pela queda.

"Strindberg é um dos iniciadores do teatro moderno, que abandona as personagens monolíticas, muito tipificadas, sem altos e baixos", continua o encenador. "E esta peça é de uma época de transformações extraordinárias, com lutas sociais, a luta pela libertação da mulher, em que se começam a analisar os comportamentos, a alma, o carácter dos indivíduos."

Vítimas ou manipuladores?


Um texto como este deixa ao encenador e aos actores margem para interpretação. Será Júlia uma vítima caída nas garras de um arrivista que se aproveita das suas fragilidades? Será uma manipuladora? O que é que João sente realmente em relação a ela? Querem ambos apenas vingar-se das suas infâncias? "A minha primeira aproximação foi fazer uma Júlia um bocadinho tonta, naif, caprichosa", conta Beatriz Batarda. "Mas depois percebi que ela é de uma inteligência extraordinária. Não é uma Lolita de 15 anos, é uma jovem de 25 anos. Ela não é uma vítima. Esse pode ser o resultado. Mas o que estou a fazer não tem a ver com o resultado, tem a ver com o percurso de uma rapariga que vive numa profunda solidão, à procura da sua identidade, utilizando os outros, neste caso os criados, num jogo. Nesse jogo de poder comete um erro que vai contra as expectativas que acha que os outros têm dela. Não aguenta o fracasso e a ferida narcísica é tão profunda que só há uma saída, que é fatal."

Rui Mendes - que faz questão de elogiar a tradução que Augusto Sobral fez do texto de Strindberg, "a partir de quatro traduções, duas em inglês e duas em francês, e vigiando o original sueco" - vê no canário (na verdade, uma canária), morto já perto da madrugada dessa longa noite, uma metáfora da protagonista. "A partir de certa altura vejo na menina Júlia um pássaro ferido e condenado a morrer." Mas não encerra a personagem nessa visão. "Como encenador não gosto de estragar ao espectador o prazer de descobrir as coisas que estão no texto. Entre uma frase e outra a personagem pensa coisas, e é preciso descobrir qual é a linha dela, porque é que passa de uma frase para outra, de uma atitude para outra, e gosto que seja o espectador a descobrir isso."

Há também aí um espaço para os actores desenharem as suas personagens. Albano Jerónimo, por exemplo, vê João como "um homem que consegue vestir um fato de gala, fica impecável, mas não tomou banho". Não quer julgá-lo. "O desafio para mim está na ambiguidade. Se a conseguirmos levar até ao fim é mais interessante."

Perante a montanha-russa de emoções, mudanças de humor e de sentimentos de Júlia e de João, Cristina, a cozinheira, "é a personagem com mais certezas, que sabe o lugar que ocupa na sociedade, sabe o que quer, e quais as coisas que se devem fazer e as que não se devem fazer", descreve Isabel Abreu. Optou por fazer uma Cristina forte, embora com algumas fragilidades - "uma das quais é a ligação com ele".

Mas no final, quando Júlia e João chegaram ao que, aos olhos dela, é o mais baixo que alguém pode chegar, é ela que surge como "o ser mais poderoso". Ela, que é mulher, cozinheira, criada. É a prova de que o poder dos outros sobre nós não depende da classe social a que se pertence ou do facto de se ser homem ou mulher - depende do momento em que a vida deles se cruza com a nossa. E quando Cristina entra na cozinha ao fim dessa longa noite, a menina Júlia chegou ao fim da sua queda, e João dificilmente conseguirá voltar a levantar-se.   

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