Para quem brilha a Índia?

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"O Tigre Branco", do escritor Aravind Adiga, é um retrato mordaz da Índia como potência emergente. "Shining India", diz o "slogan" político. Mas para quem brilha a prosperidade?

Alguém tem que contar a verdade ao primeiro-ministro chinês. Alguém tem de dizer a Wen Jiabao o que é a nova Índia. Balram Halwai decide fazê-lo, em sete cartas, escritas à luz do seu lustre. "Sua excelência, Wen Jiabao...". Corrupção, eleições forjadas, desigualdades sociais intransponíveis, homicídios. Tudo isto cabe no livro de estreia de Aravind Adiga, "O Tigre Branco" (que recebeu o Booker Prize em 2008, e que acaba de ser editado em Portugal pela Presença). E tudo nos transporta para uma Índia que ainda assim foge à nossa compreensão.

Já é um cliché escrever-se que não existe uma Índia, existem várias. A de Adiga - como a de Danny Boyle, no filme "Quem quer ser Bilionário?" - é a de grandes tensões, onde os papéis que cada um desempenha não são para subverter, mas devido a um acontecimento trágico acabam subvertidos. O empregado de uma casa de chá virado motorista foge ao seu destino e acaba empresário de sucesso. O fim de Balram conhecemos desde o início: é um "empreendedor" que matou alguém para chegar onde chegou. Mas todo o seu percurso põe a descoberto a Índia que ninguém quer ver quando compra um bilhete de avião numa agência turística. Não são só os bairros de lata, ou as aldeias miseráveis. São também as relações de força entre patrões e criados, entre castas altas e castas baixas, também (ainda que menos) entre hindus e muçulmanos. E ainda a porta giratória do centro comercial acabado de construir, onde alguém como Balram fica de fora. A não ser que compre uma t-shirt nova, com uma palavra em inglês. Chegado à última página, o leitor poderá interrogar-se: a mobilidade social é possível num país onde vigora ainda um sistema de castas rígido?

Primeiro equívoco que terá de ser quebrado: a casta não tem transposição para classe económica. Cada extremo da equação - brâmanes numa ponta e intocáveis na outra - não reflecte nem poder de compra, nem poder político. Daí talvez que Adiga se tenha apressado a dizer que o seu herói veio das "Trevas", ou seja, do meio rural. Não é um intocável, ou dalit (oficialmente, desde 1950 que já não existem intocáveis). Mas é alguém que nasceu para servir. "A Índia é dois lugares num só: uma Índia de Luz, e uma Índia de escuridão", diz a personagem Balram. Esta referência "luminosa" não será indiferente ao slogan político "Shining India", adoptado pelo BJP (partido nacionalista hindu) quando estava no poder, para realçar os progressos económicos do país. Foi derrotado nas eleições seguintes precisamente devido aos muitos milhões que tinham ficado na sombra. Como Balram.

A "revolução silenciosa"

"Qual é o mais raro dos animais, em qualquer selva? A criatura que aparece uma vez em cada geração? O tigre branco", dizem a Balram. É ele esse animal invulgar.

Filho de um puxador de rickshaw, foi criado numa aldeia onde a electricidade não chegava sempre, sem água canalizada e onde as crianças são "demasiado baixas para a idade, com cabeças demasiado grandes nas quais brilham olhos vívidos, como a consciência pesada do Governo da Índia".

Não estudou, e servia passivamente os seus patrões, misturando fidelidade com algumas interrogações. Quando se sentava ao volante do Honda que conduzia por Nova Deli, levando o sr. Ashok aos seus encontros com políticos corruptos, ou acompanhantes louras, não era simplesmente um motorista. Era alguém que assumia lugar privilegiado para observar o que estava à volta - tudo o que se passava na falsa intimidade do banco de trás.

Por isso ele é o tigre branco: representa aqueles que conseguem sair da pobreza endémica; e fá-lo através de um gesto extremo. Seria possível de outra maneira, na Índia?

Sim, em alguns casos. Mas a fórmula de quase sucesso que tem permitido a muitos indianos romper com o que até há uns anos seria o seu inexorável destino, a chamada "revolução silenciosa", vem de outro lado.

O autor da expressão é Christophe Jaffrelot, investigador do instituto francês de estudos internacionais CERI. Que explica por telefone ao Ípsilon: "O que está a mudar [na sociedade indiana] não é originado pelo crescimento económico. É o impacto da discriminação positiva". O sistema começou a mover-se quando as castas mais baixas ganharam acesso à educação.

Apesar de haver "uma classe média a emergir", defende Jaffrelot, a sua origem não está necessariamente nos 8,8 por cento de crescimento dos últimos cinco anos. "Esta prosperidade só funciona para dez por cento da população", ressalva. "Não faz qualquer diferença para os outros, que em muitos casos até viram piorar o seu nível de vida. É melhor não engolir a propaganda da 'shining India', porque o país não está nada a brilhar".

Talvez sejam úteis alguns números: segundo o Banco Mundial, em 2005, cerca de 456 milhões de indianos (o país tem 1,1 mil milhões) viviam abaixo do limiar da pobreza; 60 milhões de crianças sofrem de malnutrição crónica - o que representa 40 por cento do total mundial; apenas 13 por cento dos esgotos produzidos recebem tratamento e 700 milhões de pessoas não têm casa-de-banho; 65 por cento depende da agricultura, que representa menos de 18 por cento do Produto Interno Bruto.

Um resumo possível da Índia é apresentado com ironia logo no princípio do livro de Adiga: "O nosso país, apesar de não ter água potável, electricidade, sistema de esgotos, transportes públicos, sentido de higiene, disciplina, cortesia ou pontualidade, tem empreendedores. Milhares e milhares deles".

De onde vem, então, a "revolução silenciosa" de que fala Jaffrelot? "É fruto da política, que manda reservar 15 por cento dos empregos na administração pública aos dalits", e que guarda lugares nas faculdades para as castas mais baixas. É uma mudança ainda "em pequenas proporções, mas não negligenciável". Sobretudo tendo em conta que partidos como o BSP, de Mayawati, conseguem tomar em mãos um estado tão poderoso como o Uttar Pradesh com propaganda direccionada para os dalits e para as "other backward castes" (OBC), as castas mais baixas da pirâmide, onde está Balgram.

Comer ou ser comido

Casta: "Até os indianos ficam confusos com esta palavra, especialmente os indianos que receberam educação nas cidades", tenta explicar Balram a Wen Jiabao. "Veja: Halwai, o meu nome, significa 'fazedor de doces'. Esta é a minha casta - o meu destino."

Vale a pena continuar a ouvir o tigre branco: "Este país, nos seus dias de grandeza, quando era o país mais rico do mundo, era como um zoo. Um zoo limpo, bem conservado e organizado. Todos no seu lugar, todos felizes... Depois, graças a todos aqueles políticos em Nova Deli, a 15 de Agosto de 1947 - o dia em que os britânicos partiram - as jaulas foram abertas, e os animais atacaram-se uns aos outros... Actualmente, já só há duas castas: homens com barrigas grandes e homens com barrigas pequenas. E apenas dois destinos: comer, ou ser comido".

Tradicionalmente, a casta não está relacionada com a condição económica, mas com os rituais ligados à noção de pureza, e consequentemente a uma profissão. Filho de ferreiro, ferreiro será. Mas tal como Balram Halwai, que apesar do nome nunca aprendeu a fazer doces porque o seu pai conduzia um rickshaw, milhões de indianos romperam com o que lhes parecia estar destinado. Uma grande parte, trocando o campo pela cidade.

"As pessoas, sobretudo as que deixam a agricultura, querem um salário mensal fixo", explica Sanjay Kumar, investigador do Centro de Estudos das Sociedades em Desenvolvimento, em Nova Deli. "Procuram primeiro os cargos na administração pública e se não conseguem tentam o sector privado". De uma geração para a outra, houve 15 por cento de "transferências".

Mas a mobilidade maior é conseguida pela educação. "Os números mostram que cada vez há mais literacia. A mobilidade está a acontecer em todas as castas... Quando se recebe educação, acelera-se a mobilidade ocupacional; sem ela, as hipóteses são reduzidas".

Por enquanto, a Índia está cheia de pessoas como Balram. Pessoas que até sabem ler, mas que entendem metade do que está escrito. Isto diz o sr. Ashok, seu patrão, depois de fazer algumas perguntas ao motorista. Perguntas do tipo: quantos planetas existem? Qual o nome do nosso continente? Qual foi o primeiro primeiro-ministro da Índia? "O país está cheio de pessoas como ele, digo-te eu. E confiamos a nossa gloriosa democracia parlamentar - apontou para mim [Balram] - a personagens destas. Essa é toda a tragédia deste país".

E este é um dos resumos possíveis do pensamento da classe emergente indiana espelhado no romance de Aringa: "Uma crítica excelente à classe média, sem consciência social", define Jaffrelot.

A contestação (ou não) do estatuto

O "Tigre Branco" dá conta de uma cristalização, em que cada um deveria conhecer (e aceitar) a sua função, o seu karma.

Já sabemos que se falamos em classe média não estamos a falar de castas. Mas como reage um intocável que, tendo enriquecido o suficiente para adquirir um carro, fazer viagens regulares ao estrangeiro, ter os filhos a estudar em colégios anglófonos, continua a ser isso mesmo, intocável, ou seja, impuro?

"Do ponto de vista do estatuto, o aumento de poder económico, devido em grande parte a medidas de protecção política, de um intocável - hoje dalit - não interfere no estatuto de um brâmane, cuja natureza não é económica", responde Rosa Maria Pérez, do Centro de Estudos\u2028de Antropologia Social do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE). "Poder ou carência económica e estatuto social não são coincidentes, como podem ser numa sociedade de classes - e são em algumas conjunturas da Índia urbana".

No seu livro "India", Stanley Wolpert escreve que o sistema de castas sempre esteve próximo do hinduísmo, e que mesmo que alguns "indianos modernos" defendam a sua abolição, "a 'pureza' bramânica e a 'impureza' da ex-intocabilidade continuam a ser as estrelas polares da hierarquia social indiana".

O mito da criação que é a escritura Rig Veda diz que todos os indianos descendem de Purusha, que foi sacrificado, adianta Wolpert. Das suas "mil cabeças" nasceram os brâmanes (sacerdotes); dos seus braços os kshatrias (guerreiros e reis), das suas coxas os vaishyas (mercadores e donos de terras); e dos pés os shudras (nascidos para serem "pisados" pelas castas mais altas, ou seja, para as servir). "A subsequente expansão da Civilização Ariana trouxe mais 'primitivos', que eram tão 'bárbaros' e 'poluídos' que tinham de ser mantidos abaixo da hierarquia dos quatro varnas [castas] como 'quintos' [panchamas], mais tarde conhecidos como 'intocáveis'".

O medo da "poluição" levou a leis estritas de comportamentos dentro das castas. Como a endogamia (casamentos dentro da mesma casta) e a comensalidade. Se esta última se tem tornado mais difícil de manter - é difícil para os brâmanes comerem em isolamento quando almoçam nas cantinas das fábricas ou dos escritórios (embora muitos tragam a comida de casa) - já os casamentos continuam a ser tão "fechados" como antes. "A questão das castas nos casamentos ainda é proeminente. Não se pode casar fora da casta", diz Jaffrelot. Ou por outra, pode, mas continua a não ser bem visto.

Um estereótipo

Pérez avança ainda: "Embora a Índia urbana tenha conhecido nos últimos anos, sobretudo depois da grande abertura económica posterior a 1991, uma notável transformação social e económica, temos de ter em conta que a maior parte da população vive em meio rural, onde os mecanismos de identificação social são muito mais eficazes. Evidentemente que a Índia rural se transformou ela própria - a ideia de uma Índia estável e tradicional só existe nos estereótipos românticos e orientalistas - mas aí a adscrição de estatutos é muito mais rigorosa e não tem como base critérios de natureza económica".

Em todo o caso, "os dalits questionam o seu papel", diz novamente o analista indiano Kumar. "Aconteceu no Bihar, no Uttar Pradesh, no Tamil Nadu. Nunca poderá ser pacífico. Há sempre tendência para revoltas e há tenções entre castas". Adianta que o OBC "é agora uma força política dominante, representa uma mudança social gigantesca neste país".

O facto de haver contestação ao sistema de quotas é um sinal de que essa política está a ter resultados, comenta Cláudia Pereira, também do ISCTE. Em Goa, onde estudou o grupo gauddé (de forma simplista: uma casta dedicada sobretudo à agricultura que se assume oficialmente como tribo), "as quotas de discriminação positiva estão a surtir efeito. Muitos fazem a escolaridade básica e chegam à universidade por meio de quotas". Depois, e ao contrário dos seus pais e avós, conseguem melhores empregos; serão capazes de dar melhor educação aos seus filhos. E toda a estrutura familiar se altera.

Para já, ainda há situações como esta: "As pessoas de elite trabalham com intocáveis no mesmo sítio, mas se puderem evitam falar com eles", conta Cláudia Pereira.

Também há os que, como Balram, rompem o ciclo de forma mais trágica: sem choque, o motorista mata o patrão e fica com o dinheiro que ele trazia na pasta para corromper um político. O livro termina sem arrependimentos. "Valeu a pena para saber só por um dia, só por uma hora, só por um minuto, o que significa não ser um criado. Acho que estou pronto para ter filhos, sr. Primeiro-ministro".

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