O fim das ilusões

É o fim do cinema de super-heróis tal como o conhecemos.

É assim que os super-heróis morrem: em segredo, sem máscara, longe dos olhares do público que supostamente protegem. Mas estes super-heróis, reformados por ordem executiva, não são "os do costume": estão longe de ser santos, deixaram os anos de combater o crime corroer a sua noção de justiça até nada restar a não ser uma mão-cheia de amargos de boca e amarguras existenciais para, no fim, todos se virarem contra eles e eles próprios perceberem que "a verdade, a justiça e o modo de vida americano" pelo qual lutaram são coisas muito mais flexíveis do que parecem à primeira vista.


Sejam bem-vindos ao reverso do sonho americano tal como concebido por Alan Moore, o escritor que virou o "comic-book" tradicional de cabeça para baixo, e pelo seu cúmplice, o desenhador Dave Gibbons. Sejam bem-vindos a uma América alternativa onde os super-heróis ajudaram a combater as guerras e Richard Nixon está a cumprir o terceiro mandato consecutivo, e onde o destino de um mundo ainda e sempre em Guerra Fria, à beira do holocausto nuclear, está nas mãos de meia-dúzia de super-heróis reformados, ilegais, francamente confusos e com muito pouco de super. Não admira que tenham sido precisos vinte anos e uma série de tentativas intermináveis para trazer a novela gráfica de Moore e Gibbons ao cinema: de certa maneira, só depois da humanização existencialista dos "comic-books" que atingiu os seus picos com o "Homem-Aranha" de Tobey Maguire e Sam Raimi, e da sua reconfiguração como metáfora distorcida do nosso mundo com o "Cavaleiro das Trevas" de Christopher Nolan, só agora, dizíamos nós, um filme como este pode fazer sentido.

Porque "Os Guardiões" é o anti- "blockbuster" e ai de quem vier aqui à espera de um contínuo de acção cinética e efeitos visuais. Denso, violento, perturbante, niilista, paranóico, adulto e sombrio, contado à sombra de Dylan e Cohen, é um cadinho fervilhante de ideias que transcendem em muito a proverbial aventura de super-heróis - aqui tão vilões como heróis, numa dualidade que o filme de Zack Snyder não se cansa de reforçar - e o próprio género em que se inscrevem. Respeitando, à superfície, os códigos (desde a estrutura de investigação de um crime até à revelação do "vilão" que manipulou os cordelinhos desde o princípio e aos combates finais) mas, ao mesmo tempo, corroendo-os pelo interior, subvertendo-os e dinamitando-os até nada restar senão uma "carcaça", um andaime vazio que revela todo o mecanismo como uma imensa ilusão. De certa maneira, um "apocalipse" no sentido bíblico da questão, de "novo começo" depois de acontecimentos que fazem tábua rasa do passado - mas nesta história sobre o fim das ilusões nem destino nem divindade existem, apenas uma espécie de infernal encadeamento de escolhas e decisões onde mesmo o prazer de combater o crime por gostar de praticar o bem é algo de efémero, quase vão. E isso tem tudo a ver com a cavalgada louca em direcção ao apocalipse que a história constrói sem abrandar.

Some-se a isto as quase três horas de duração de "Os Guardiões" e ficamos a perceber que este é uma espécie de "blockbuster"-limite - segue na tradição recente de usar actores em vez de vedetas (e o elenco, aqui, é inatacável), leva ao limite a tonalidade sombria de que muitos acusaram os dois "Batman" de Nolan, trata os seus espectadores como gente que pensa e quer ser estimulada, deixa de fora logo à partida o mero flash de adrenalina adolescente. Este não é um filme para putos que vêm à procura de emoções fortes - é isso que o torna tão estimulante na corrente paisagem cinematográfica americana.

Mas essa sensação de "filme de ideias" mais do que de espectáculo, de "comic-book" entendido como filme de arte e ensaio que faz a força de "Os Guardiões", é também o que o enfraquece - porque, de repente, percebemos que Zack Snyder não traz à história de Alan Moore nada de seu nem de especificamente cinematográfico, e provavelmente nunca o terá querido fazer. Ilustra apenas, com respeito e devoção, a obra que lhe coube em mãos. "Os Guardiões" limita-se a querer fazer justiça em imagens à narrativa visionária de Moore - e se o respeito pela obra é não apenas legítimo como louvável (sobretudo face a alguns dos travestis que se fizeram anteriormente passar por adaptações do seu trabalho), deixanos um travozinho de tristeza na boca por não ser mais do que uma tradução respeitosa para cinema dos painéis de Gibbons, por não se sentir sequer aqui a urgência do "Despertar dos Mortos" nem as referências picturais de "300".

Ficamos assim, a meio caminho entre a admiração pela capacidade de pôr em imagens uma obra seminal e a frustração por não ser mais do que isso - que, é verdade, já é muito. Mas que, face ao que "Os Guardiões" é no papel, corre o risco de não ser suficiente.

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