À procura da vida perdida

Depois de oito anos sem publicar, Paulo Castilho regressa com "Letra e Música". Estamos perante uma voz singular na literatura portuguesa

Ao quinto romance, Paulo Castilho (n. Matosinhos, 1944) confirma que - desde que se estreou com "O Outro Lado do Espelho" (1980, Prémio Literário Diário de Notícias), passando por "Fora de Horas" (1989, Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores/APE) - é uma das vozes mais interessantes da literatura portuguesa contemporânea. Isto é: ninguém escreve como ele no panorama romanesco actual.

A narração de "Letra e Música" - dividida entre um escritor, Filipe Omega Correia, e Isabel Maria, a sobrinha de Mónica Mendes, a personagem central do livro - é assumida na primeira pessoa, como é habitual nos livros de Castilho, com uma desenvoltura próxima do cinema (acção-corta-outra-cena), e com distância face às personagens.

O estilo é seco. Há aforismos, é certo. Mas não existem frases delicodoces. Há sim frases banais, curtas, proferidas pelo mais banal dos mortais. Pode dizer-se - e isso talvez irrite o leitor (ou não...) - que às vezes, sobretudo no capítulo amoroso-sexual, o romancista leva longe de mais a curiosidade. Mas, na frase ou no período seguinte, emenda a mão e abre portas do romance para que o leitor adira às histórias. Em resumo, um estilo coloquial, certeiro, servido por um olhar crítico, ora corrosivo, ora de uma ironia muito fina.

Os temas do romancista? Os de sempre, desde a sua aparição nas letras portuguesas: os dilemas intergeracionais, os amores, a dissolução das ideologias depois de terem caído todos os muros de Berlim (leia-se: utopias), uma lucidez pouco habitual em escritores da mesma geração do romancista diplomata (a vice-versa é, igualmente, verdade).

Nas histórias dos seus romances, ninguém, nem mesmo os seus companheiros de estrada, escapa ao olhar crítico de Castilho: "Todos os escritores são iguais. (...) Somos iguais uns aos outros e passamos uma vida inteira a mostrar ao mundo a nossa originalidade" (pág., 173).

Qual é a história de "Letra e Música"? A de uma cantora, Mónica Mendes (M.M), que, com apenas 18 anos, ruma a Londres, onde inicia uma carreira com algum sucesso como cantora rock da banda Mon and The Rainmakers. Ao mesmo tempo que quer viver a espuma dos dias da década de 60, vai escrevendo um diário - o "pano de fundo" que se entrelaça com o romance em construção - a partir do qual um escritor, Filipe, à beira de um ataque de nervos por não ter inspiração para gizar qualquer coisa que se veja, vai "escrever uma biografia da M.M". "A minha preferência neste momento seria um romance baseado na biografia. À beira do plágio" (pág., 150).

Toda a história de M.M. - remotamente inspirada numa prima do autor, Ana da Silva, da banda punk Raincoats - é relatada no seu diário, que se entrecruza com as personagens contemporâneas que querem seguir o seu rasto, as suas deambulações, desde o momento em que deixou a pátria lusa e uma casa família em Sintra, passando pelas suas estadas em Inglaterra e por Nova Iorque como lugar de apaziguamento e acabando na Califórnia.

A palavra chave de "Letra e Música"? Procura. Mónica, qual fantasma que vai deixando notícias das suas performances, dos seus amores, das suas perplexidades perante um mundo diferente, procura perceber o real à luz da utopia da geração de 60 ("make love not war, and so on"), indo abandonando o sonho à medida que o tempo passa e a realidade muda. Diário e romance misturam-se vertiginosamente: Filipe anda à procura dos pedaços que M.M. relata no seu diário para no fundo se procurar, o "Leitmotiv" último do seu livro: "Quero com isto dizer que incluo tudo o que escrevi não apenas sobre a Mónica Mendes, mas também sobre nós dois e ainda outras coisas sem interesse, que estão todas no mesmo ficheiro e que seria demasiado demorado extricar" (pág., 211). A procura move igualmente a sobrinha de M.M., Isabel Maria, que quer perceber, 30 anos depois, o que levou a tia a mudar-se de armas e bagagens para a vida prometida e cheia de sonhos "made in USA", onde acaba por morrer (num salto em frente para a morte?), numa Harley-Davidson, em louca velocidade, idêntica à que imprimiu à sua vida. Pat, o último homem com quem Mónica se cruzou na vida, talvez sintetize sem poder saber o sentido do romance: "Tê-la ali ao meu lado, tocar-lhe era a coisa melhor da minha vida. (...). Disse-lhe também que andava na estrada à procura não sei de quê, mas na verdade à procura dela e agora que tinha voltado a encontrá-la era para sempre. A Mónica tapou-me a boca com a mão e disse-me: 'Now is perfect, tomorrow is another day'" (pág., 259).

Há desencanto, amargura, solidão. Para dar sentido à vida, há pragmatismo, partilha de vivências e "solidariedade de gerações" (pág., 254). A constante relativização de valores, em que nada é a preto ou a branco, só é salva no romance pela insustentável leveza (ou dureza) do amor, mesmo quando as situações amorosas não são resolvidas. Tomás nota (pág. 98): "Não escolhemos quem amamos. O amor é que nos escolhe."

Paulo Castilho pode bem, com "Letra e Música", dar de novo que falar, quando o júri da APE se reunir para escolher o Grande Prémio de Romance e Novela de 2008.

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