"Watchmen" e "Star Trek": só para "fanboys"

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Dois tesouros da cultura pop(ular), dois exemplos de abordagens cinematográficas para títulos essenciais de uma certa cultura de nicho que se prefere chamar "nerd" em vez de um mais estigmatizado "geek". "Watchmen - Os Guardiões" chega às salas a 5 de Março, "Star Trek" a 7 de Maio. Até lá, ficam os trailers e um punhado de cenas dadas a conhecer à imprensa, numa sessão em jeito de antevisão, em que os realizadores, no ecrã, explicam as suas intenções. E fica o falatório na Internet, pró e contra o que se está a fazer com estes dois títulos.

O que une estes dois projectos é, em primeiro lugar, o "timing". Apesar da arrastada luta judicial pelos direitos da adaptação ao cinema da BD de Alan Moore e Dave Gibbons, "Watchmen" chega na altura certa, diz o realizador Zack Snyder ("300") aos jornalistas no início da projecção. Di-lo no ecrã e explica que no auge da febre dos filmes de super-heróis (e suas declinações televisivas), que geram mais receitas do que os "comics", "Watchmen"-filme faz todo o sentido, porque apresenta "uma visão desconstrutivista dos super-heróis". Põe as coisas em perspectiva.

Quanto a "Star Trek", J.J. Abrams ("Missão: Impossível III", "Cloverfield", "Perdidos", "Fringe") nem era um "trekkie". Mas apaixonou-se pelas personagens, diz-nos, também em versão projectada no ecrã, e quis fazer "um espectáculo grande, gigante" a partir da criação de Gene Roddenberry. Cerca de seis anos depois do último dos dez filmes "Star Trek", surge a reinvenção-prequela de Abrams. E que parece ser uma abordagem fílmica século XXI, com as convenções narrativas que aliam a comédia "one-liner" às sequências de acção vertiginosas, de uma mitologia tipicamente século-XX-a-olhar-para-o-futuro.

É uma prequela que surge numa altura em que o filão da ficção científica, ao contrário do que acontece com o dos super-heróis, ainda tem espaço e boa quota de mercado a conquistar. Hollywood está em pleno design inteligente dos seus filmes para esbugalhar olhares com efeitos de espantar, na esteira dos dois grandes filmes do género de 2008 - "O Cavaleiro das Trevas" e "Homem de Ferro" - que, no entanto, foram mais filmes de conteúdo do que de CGI. Mas adiante.

"Star Trek"

Tentando não fornecer demasiados "spoilers", eis o que vimos de "Star Trek".

Vimos sensualidade, antecipamos mais sexo e menos subtilezas do que no passado. Vimos Leonard Nimoy e Zachary Quinto (o Sylar de "Heróis") como Spock. Vimos um sempre delicioso Simon Pegg ("Hot Fuzz") como Scottie, aliás Montgomery Scott, a inventar o teletransporte temporal. Vimos James Kirk, bem antes de ser chefe, com as mãos no peito de Uhura, ainda estudante. Vimos cenários que evocam a visão que os 1960s tinham do que seria o futuro e que, em contrapartida, têm um "look" mais "low fi".

E vimos um James T. Kirk rebelde a ir ao encontro do seu desígnio. É este o tom J.J. Abrams. "Sexy", assume, e optimista: "Sentes que estás destinado para algo melhor, algo especial?", pergunta a voz "off" do capitão Pike a um Kirk que observa uma Enterprise em construção. Isto é típico do género sci-fi/fantasia, tal como o olhar positivo sobre o cosmos propalado em meados do século passado é um clássico de "Star Trek".

Cena 1: o jovem James Tiberius Kirk (Chris Pine, "Um Trunfo na Manga", 2007) num bar povoado de cadetes da Academia da Frota Estelar, interessado na beleza de Nyota Uhura ( Zoe Saldana, "Ponto de Mira", 2008). Uma luta, um oficial que incentiva Kirk, em memória do seu pai herói, a integrar a Academia. Está apresentado o capitão Christopher Pike (Bruce Greenwood). No "trailer, conhecemos um ainda mais jovem Kirk, com cerca de 13 anos, a conduzir um carro nos campos americanos até ao precipício, que até faz lembrar o início de "Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal" ou as cenas finais de "Indiana Jones e o Santo Graal". É um piloto nato, mas com uma melena rebelde.

Cena 2: Três anos depois da primeira cena, a tripulação da Enterprise prepara-se para viajar até Vulcano, onde há uma anomalia meteorológica. Kirk não está autorizado a partir, mas graças a Bones McCoy (o médico da nave, interpretado por Karl Urban) está a bordo para evitar uma emboscada. Primeira imagem dos vilões, os Romulanos, cujo líder Nero é um inicialmente irreconhecível Eric Bana ("Hulk", "Munique"). Primeira visão do jovem Spock, cuja relação com Kirk é tudo menos pacífica.

Cena 3: Leonard Nimoy. Precisamos de dizer mais alguma coisa? Através de uma viagem no tempo, o velho Spock encontra o jovem Kirk, e quem se lembra de "A Ira de Khan" (1982) não pode deixar de sentir que há um tema recorrente, o do envelhecimento na era galáctica, que se abre novamente.

Cena 4: "O Cavaleiro das Trevas" encontra-se com "Ruptura Explosiva", mas em versão "swashbuckling" (o género que envolve lutas de espadachins, época e romantismo) espacial. Para impedirem a destruição de Vulcano, Kirk, o tenente Hikaru Sulu (John Cho) e um outro tripulante vestido de vermelho (o que nunca é bom sinal no universo "trekker") mergulham do espaço, com pára-quedas às costas, para o planeta.

"Watchmen - Os Guardiões"

A transposição para o cinema de "Watchmen" tem tudo a perder (no caso dos fãs) e muito a ganhar (no caso dos espectadores desavisados). A verdade é que, tal como "Star Trek", o romance gráfico de Moore e Gibbons tem uma legião de damas e cavalheiros que são fãs extraordinários e, por isso, exigentes. E que já contam com o pior, dadas as experiências passadas de adaptações de BD que correram mal, como uma experiência laboratorial arriscada que cria um super-vilão.

E com o "development hell" em que esteve mergulhado o filme, que culminou com a vitória da 20th Century Fox sobre a Warner Brothers no que toca aos direitos de "Watchmen - Os Guardiões", muita gente já especulava que o filme nunca chegaria às salas. O título foi o único romance gráfico a integrar a lista dos melhores romances do século XX da "Time" e a ganhar um Hugo.

Zack Snyder, emoldurado por uma biblioteca da qual saltam à vista os livros "Absolut Watchmen" e "Absolut Dark Knight", está contente na pré-apresentação das cenas semi-prontas do filme. O realizador não se cansa de ressalvar que ainda faltam efeitos visuais em algumas cenas.

Mas o que as três sequências (e uma breve montagem feita para jornalista ver) permitem antever é que Snyder tratou a BD como um "storyboard" para o filme. Visualmente, o respeitinho é bom e não estará muito longe do que seria ver Rorschach com a sua máscara facial em movimento se os "comics" pudessem fazê-lo. E não há só cenas retiradas directamente da página - uma referência musical no livro, Bob Dylan, tem o seu "The times they are a-changin'" a embalar os créditos iniciais.

Mas o que "Watchmen" terá mesmo de ser, e tudo por causa de Alan Moore, é político. A história passa-se num 1985 alternativo, em que Richard Nixon ainda é Presidente e em que a Guerra Fria está no auge. A ameaça nuclear é iminente, os cenários são realistas e, do que foi visto dos primeiros dez minutos do filme, os a História americana está repleta de vigilantes mascarados.

Começamos com o fim da vida do Comedian (Jeffrey Morgan, "Anatomia de Grey") e com a passagem em revista do século XX americano com os Watchmen presentes nos momentos-chave de Kennedy, do Vietname, do mundo, como um Benjamin Button ou um Zelig de Woody Allen. Um mergulho no universo das duas gerações de Watchmen, guardiões da ordem sem poderes sobre-humanos e rapidamente, como Batman, malditos pela sociedade em geral. Há também o amor entre Night Owl 2 (Patrick Wilson) e Silk Spectre 2 (Malin Akerman, "O Mal Casado") e a vingança de Rorschach (Jackie Earle Haley, o pedófilo de "Pecados Íntimos") sobre o seu arqui-inimigo.

O cinismo entra em cena com o único dos Guardiões que tem, de facto, tudo o que informa o carácter do típico super-herói: Dr. Manhattan (alusão ao Projecto Manhattan que deu ao mundo a bomba atómica), o sábio homem comum vítima de um acidente científico que ganha novo corpo, nova vida - e só mais tarde nova farda. É que "Watchmen" tem um salutar momento de nudez masculina frontal CGI, com Dr. Manhattan (Billy Crudup) a emergir da física nuclear em todo o seu esplendor azul fálico. Politizado, Manhattan é um cínico cansado da humanidade que o instrumentaliza, desiludido com a sua transformação em arma pelo governo americano.

Este é o filme fiel ao original, político em contraste com o escapismo de J.J. Abrams. Esperam-se coisas boas de "Watchmen", um dos primeiros "comics" com o folclore dos super-tipos que simultaneamente questiona a sua psique, o seu papel de vigilantes/fora-da-lei, movendo-se nos territórios fantasistas com um pé no solo sujo da "realpolitik". Este ano, só terá par em "Wolverine", declinação "X-Men", e surge num contexto forjado pelo cunho Frank Miller ("300", "Sin City", "The Spirit") e pelos "blockbusters franchise" "Homem-Aranha" ou "Quarteto Fantástico" - só podemos desejar que "Watchmen - Os Guardiões" se afaste deste último como o Super-Homem da kryptonite.

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