A sétima hora de Jack Bauer, agora nos Estados Unidos de Obama

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Um dia na vida de Jack Bauer é sempre um dia de ameaça terrorista DR

Apenas duas semanas e meia depois da estreia nos EUA, a sétima temporada de 24 chega esta noite à RTP2. A estreia acontece apenas oito dias depois da tomada de posse de Barack Obama e uma semana após o novo Presidente ter anunciado o encerramento da prisão de Guantánamo dentro de um ano. A primeira temporada de 24 estreou-se apenas dois meses depois do 11 de Setembro e capitalizou com o estado temeroso de um país – e, por arrasto, do mundo. Tendo em conta a cronologia de 24, resta uma questão para esta temporada: o que fará Jack Bauer nos Estados Unidos de Obama?

A sexta temporada foi exibida até Maio de 2007 e depois seguiu-se um longo hiato. Kiefer Sutherland, Jack Bauer para os inimigos, passou 48 dias preso por condução sob o efeito de álcool e os guionistas fizeram cem dias de greve. As audiências americanas afastavam-se de 24, talvez pela menor qualidade da sexta época. Em Novembro de 2008, surgiu 24: Redemption, o telefilme que faz a ponte entre o sexto e o sétimo dia, com África como cenário. A RTP2 exibiu-o em Dezembro (255.300 espectadores, 10,9 por cento de share, dados da Marktest).

Entretanto, George W. Bush decaía em popularidade depois do Patriot Act, das fotografias da vergonha em Abu Ghraib e do waterboarding (afogamento simulado) em Guantánamo. Em 2007, um artigo da New Yorker noticiava que o reitor da Academia Militar de West Point e outros formadores de interrogatório militar foram ter com os criadores de 24 para os avisar de que os seus cadetes e os jovens soldados no Iraque estavam a ser influenciados e galvanizados pelos métodos de tortura da série de TV.

É só uma série de TV?

É só uma série de TV, diz o novo responsável de 24, Howard Gordon, que sucedeu a Joel Surnow. “Se Jack Bauer está a ter maior impacto nos nossos interrogadores do que a sua formação, então obviamente não deve ser 24 a ser atacado, deve ser o treino e a supervisão destes militares”, disse ao New York Times.

Entretanto, em Novembro, um artigo de opinião na revista médica The Lancet voltava a associar Jack Bauer aos malefícios da tortura no mundo. Durante a avaliação do impacto da tortura a que foi submetido no seu país, Kofi, um paciente do especialista em cuidados primários Homer Drae Venters, da Universidade de Nova Iorque, perguntou-lhe: “Quem é Jack Bauer?”. Venters, autor do texto, ficou nauseado com a pergunta.

Kofi, hoje asilado político nos EUA, seguiu os debates das primárias norte-americanas. Num deles, perguntava-se se, num cenário de atentado iminente, usariam a tortura para obter potenciais informações para evitar o ataque. Um dos pré-candidatos republicanos, Tom Tancredo, respondeu: “Nesse momento, conto com o Jack Bauer”.

O senador John McCain, exprisioneiro de guerra no Vietname, foi o único republicano a dizer que considera a tortura um acto anti-americano e que nunca a usaria. Mas os EUA, mesmo na antecâmara da ascensão de Obama, não estavam totalmente com ele. Um conjunto de sondagens citadas no artigo da Lancet mostra que os americanos aceitam cada vez mais a tortura – em 2006, 36 por cento toleravam a ideia; em 2008, a percentagem subia para 44. “Para os americanos”, observa Kofi, “um medo tóxico do terror permitiu que a tortura emergisse como uma prática assumida”, escreve Venters.

Arquétipo da era Bush

Jack Bauer é, como escreveu o New York Times, “um arquétipo dos anos Bush”. Agora, que os Estados estão unidos em torno do seu primeiro Presidente negro, Bauer regressa, quatro anos ficcionais após a sexta série, para ser julgado pelos seus actos, já com a sua Unidade Anti- Terrorista (CTU) extinta e com a primeira mulher Presidente, Allison Taylor (Cherry Jones), acabada de chegar à Casa Branca.

24 é, no fundo, um poço de contradições. É uma série-tipo da era “ou estão connosco, ou estão com os terroristas” (Bush, após o 11 de Setembro), é um produto da conservadora Fox, mas também é a série em que dois negros foram Presidente e em que agora há uma mulher na Sala Oval. E na sexta temporada em particular, Bauer e outras personagens funcionaram como caixa de ressonância da política do exterior – as questões sobre a tortura versus bem maior, a luta de poderes entre os mais e os menos éticos.

O ano de 2009 é “uma espécie de desafio, na esteira de algumas das críticas” ao passado, disse Gordon ao New York Times, “e, politicamente, algumas das coisas que a série tinha foramse desgastando com o tempo”, reconhece. O clima geopolítico mudou, a famigerada hope entrou no léxico positivista e nesta sétima temporada (a oitava será provavelmente a última) os argumentistas estavam “mais sensíveis” em relação a algumas das coisas que fizeram, completou Gordon.

Em Maio de 2008, a Amnistia Internacional (que já foi vilã num episódio da 3ª temporada) lançou um spot de campanha contra a prática do waterboarding. Num comentário à campanha, Phillip Sands, professor de Direito da University College London, argumenta no Guardian que as técnicas de interrogatório usadas em Guantánamo foram inspiradas pelas práticas de Jack Bauer. Um pouco antes, Howard Gordon participou na curta-metragem Primetime Torture, da Human Rights First, usada para sensibilizar as tropas para a ineficácia e ilegalidade da tortura.

A equipa de 24 garante estar sensibilizada para o tema. A tortura “é simplesmente usada como uma ferramenta dramática”, disse Kiefer Sutherland no LA Times. “Por trás disso, é certo que levantamos questões morais sobre o que é certo e errado”, sugeriu.

Após 146 horas de série, Bauer vai inevitavelmente confrontar-se com mais uma ameaça urgente. Se vai ou não agir como nas últimas horas, imbuído de change, é outra questão.

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