A música, o palco e a vida segundo Jandek

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Sábado em Serralves vai estar uma das personagens mais fascinantes da música contemporânea.

Quem é Jandek? Parece uma interrogação banal, ainda que legítima, mas neste caso tem uma inesperada relevância ontológica. Isto porque Jandek é uma personagem e um músico real. Alguém que apagou e desenhou, com uma música derivada do blues, bem como do rock, as fronteiras que separam a arte da vida. Dirão que não é o único e aceita-se a justeza do reparo. Acontece que nunca antes a cultura popular conheceu uma narrativa assim.

Voltemos à pergunta inaugural.

Uma maneira (rápida) de conhecermos este músico de Houston, Texas, é ir ao seu concerto no Auditório de Serralves. Em palco, para conhecedores ou não, o encontro (promovido por Serralves e pela Filho Único) será mediado pela electricidade e numa actuação a solo com piano e, talvez, guitarra. Mas por trás de cada apresentação ao vivo esconde-se sempre uma história, e a de Jandek é tão fascinante quanto incontornável. Merece, deve ser contada.

Considerado um dos autores mais importantes do underground americano, Jandek representa um projecto musical iniciado em 1979 e que conta, actualmente, com mais de 50 discos. Uma das marcas que, desde logo, distinguiu a sua abordagem ao blues e ao rock foi o menosprezo disciplinado pelo saber tocar e a melodia. "Ready For The House" (1978), o primeiro trabalho, é dominado por uma guitarra e voz em desalinho completo, mas em contrapartida verte uma expressividade que atira as letras e os sons contra a parede para investigar um estilo próprio. E a assinatura singular de Jandek não se deteve na música: estendeu-se, também, à imagem. Na capa do mesmo disco vemos uma fotografia pouco nítida do interior de um quarto onde se vislumbra um livro de Christopher Marlowe, poeta e dramaturgo inglês do século XVI. Tratar-se-á da casa de Jandek? O que significa a presença da obra literária? O que há de encenação e verdade nesta fotografia?

Desconhecem-se, ainda hoje, as respostas. Sabe-se, apenas, que foi a partir de uma reunião inédita entre música difícil e obscura e imagens misteriosas, aparentemente anónimas, que Jandek iniciou a sua narrativa.

Um rosto depois da música

A reacção a "Ready For The House" foi quase nula, mas uma crítica positiva na revista de música alternativa "Op" motivou-o a continuar. Construir uma carreira, porém, não significava aparecer publicamente e recolheu-se ao anonimato e à solidão. Desapareceu. Não deixou por isso de fundar a sua editora (Cornwood Industries) e nos anos 80 gravou 17 discos. Pelo meio foi abrindo a porta a outros - há uma mulher chamada Nancy que canta em "Chair Beside A Window" (1982) e ouvem-se outras vozes em "On The Way" (1988). O som manteve- se austero e seguro numa guitarra, eléctrica ou acústica, e na percussão desregrada na tradição dos The Godz ou dos Holy Modal Rounders.

Com o tempo, e em discos como "Follow Your Footseps", de 1986, ou "You Walk Alone", de 1988, foram-se reconhecendo riffs e acordes que se aproximavam da canção tradicional Apesar de habitar um tempo paralelo, edificando aí a sua obra, Jandek não era totalmente indiferente à história oficial do pop-rock; evocou tanto o pós-punk das Raincoats e dos Swell Maps como Bob Dylan ou Michael Hurley. E a imprensa independente dos EUA estava atenta: críticos como Byron Coley ou Douglas Wolk começaram a discutir apaixonadamente o seu trabalho em revistas "mainstream".

Na década seguinte continuou prolífico, secreto, inacessível (só deu uma entrevista) o que não impediu que vários lhe seguissem as pisadas. Alguns retiraram ensinamentos: os Smog dos primeiros anos "roubaram-lhe" a instrumentação desordeira, os Low inspiravam-se na forma como deixava respirar o estúdio e os Charalambides (também de Houston) aprenderam com os espaços que ele criara entre a voz e a guitarra.

Reconhecida a obra, faltava conhecer o artista, mas o homem (que dizem chamar-se Sterling Richard Smith) foise furtando a revelações em carne e osso. Das letras (terrível, duras, oníricas) ainda ninguém ousou dizer que têm algo de autobiográfico. Restam as capas dos discos. E é ele que vemos com idades, roupas e penteados diferentes, em quartos ou diante de alpendres. Há imagens que remetem para iconografias familiares (Robert Johnson, Dylan, Nick Cave, talvez Tim Buckley) e denotam um uso consciente da capa como suporte fotográfico de um auto-retrato; outras mostram baterias, guitarras, espaços exteriores de uma cidade (éramos capazes de jurar que cita William Eggleston). Todas parecem confluir para a construção de uma personagem.

A confirmação final de que aquele era o seu rosto, e não o de uma figura inventada, aconteceu em 2004, na cidade de Glasgow e num contexto novo: o primeiro concerto ao vivo. Jandek quebrava assim, de forma inesperada, um isolamento de décadas para se revelar enquanto pessoa pública, performer num palco - e nos últimos quatros anos até hoje, na Europa e nos EUA, outros concertos têm sido organizados com diversos músicos e, quase sempre, feitos de material inédito.

Para os fãs e para o público trata-se do momento mais bizarro da história do músico, mas também, talvez, o mais desejado. Afinal Jandek sempre agiu segundo os seus apetites. Tocou, gravou e mostrou-se apenas e quando quis. Podemos imaginá-lo como um artista interessado em interrogar as nossas noções de celebridade, autoria, ficção. Ou apenas como alguém que construiu o seu próprio palco e dele tentou a sorte. Um escritor de canções, uma personagem chamada Jandek.

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