No quarto de Nanni

Agora é assim: sabemos como Nanni Moretti faz sexo.

O Vaticano e os "Cahiers du Cinéma" ficaram chocados com a cena de "Caos Calmo" que nos mostra os fantasmas sexuais de Nanni Moretti - é claro: da personagem interpretada por Nanni Moretti, Pietro Paladini, que no mesmo dia em que salva uma mulher de morrer afogada na praia chega a casa e descobre-se viúvo.

O que une o Vaticano e uma revista que já foi um farol de cinefilia não será para aqui chamado - ou, por pudor, não queremos que seja para aqui chamado. Vamos no entanto pormenorizar: o Vaticano, e recordamos a polémica na altura da estreia italiana do filme, condenou a ausência de sentimentos, emoções, de uma sequência que considerou animalesca; os vetustos "Cahiers" consideram a coisa... "abjecta" - o plano da mão de Moretti a segurar a cabeleira de Isabella Ferrari (que interpreta a mulher que Pietro Pallavicini salvou) foi demais para eles.

Se se disser que esta sequência é onírica q.b., que nada nos garante que de facto aconteceu na vida de Pallavicini, que é mais sonhada e desejada do que outra coisa, aproximamo-nos da questão: já tínhamos estado no "Quarto do Filho", aqui entramos no quatro de Nanni, de uma das declinações do ser "morettiano" que o actor/ realizador vem trabalhando há décadas. Estamos com fantasmas.

Foi o facto de o filme ter aberto as portas da intimidade - e não é a intimidade de qualquer pessoa, é a intimidade de alguém que já tinha sido pai, mas mesmo como marido nunca fora amante; ou seja, falamos de uma "persona" cuja dimensão sexual era sempre ilidida -, que chocou. Não se diz que nunca se deve chegar demasiado perto das pessoas que admiramos? Para alguns as ondas de choque tiveram o efeito de um corte epistemológico, se bem que, como se diz também nas entrevistas que publicamos, o cinismo e a abjecção foram domadas para o filme, que nos mostra um Pietro Paladini menos cínico. E uma cena de sexo menos... brutal.

De qualquer forma: sabemos agora como Nanni Moretti faz sexo. "Caos Calmo", portanto, continua a trabalhar uma "persona". O filme não foi realizado por Nanni, mas por Antonello Grimaldi - só que Moretti é um autor do argumento, baseado num livro de Sandro Veronesi, livro esse que já era "morettiano" antes do filme. Portanto, a "persona" é um "a priori", e é naturalmente vampírica, mas isso não é novidade.

Nestes avanços para que "Caos Calmo" colabora, aumentando os limites que tínhamos como seguros para uma "persona", não está só o sexo. Habituados que estamos a uma figura que esbraceja, a um corpo sobretudo reactivo, encontramos agora - o processo não começa neste filme, já estava em "O Quarto do Filho", mas agora é sublinhado - um momento de pausa. No filme, como no livro, Pietro Paladini imobiliza-se, depois da morte da mulher, frente à escola da filha.

Literalmente: senta-se num banco de jardim, que passa a ser o quarto da sua vida. Como ele pára, tudo à volta parece aumentar de velocidade, derrapar. A neurose e a loucura "morettianas" parecem, aliás, disseminar-se pelos outros (a cunhada, o irmão...), como um vírus, como uma energia que tem de encontrar novos territórios para se espandir. É nesta coexistência de tempos que Grimaldi ancora este filme sombrio, algo fantasmagórico apesar da sua aparente leveza - tudo começa, aliás, como um comédia de Dino Risi, dois homens, Moretti e Alessandro Gassman, num carro. É claro que o filme podia dar-nos menos música - a de Rufus Wainwright e dos outros.

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