Uma vacina contra a morte

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"Fome" é um prolongamento natural da obra plástica de McQueen.

A prisão e as fugas têm sido tema recorrente do cinema, quer na sua dimensão ficcional, incluindo adaptações de obras literárias, quer na sua faceta documental. Do erotismo de "Un chant d''amour" (1950), de Jean Genet à tensão de "Alemanha no Outono" (1978), um filme colectivo (Fassbinder entre os realizadores) centrado nos acontecimentos relacionados com os Baader-Meinhof, passando por "Titicut Follies" (1967), refl exão de Frederick Wisman acerca de uma prisão-hospital americana ou ainda pela lição de estética "Un Condamné à Mort S''est Échappé" (1956), de Robert Bresson, há uma multiplicidade de pontos de vista sobre as relações sociais que se estabelecem num espaço concentracionário. Falta, é certo, de um século soterrado de imagens, mais documentos que testemunhem o mal absoluto, essa interrogação permanente de Jean-Luc Godard, Marcel Ophüls ou Claude Lanzmann. Uma situação comum a tantas histórias, sobretudo aquelas que se querem distantes do olhar.

A primeira incursão cinematográfica de Steve McQueen (Londres, 1969), "Fome", é a mais próxima do corpo, neste caso o de Bobby Sands (Michael Fassbender), que parece transportar consigo todas as dores do mundo, de Cristo às vítimas da Sida - veja-se a segunda metade do fi lme, nomeadamente as imagens do hospital, tão próximas de tantas registadas a partir dos anos 1980 - e é nesse tempo que morrem também, em consequência de uma greve da fome, os prisioneiros do IRA. No âmbito de um fi lme político, a dimensão física dos planos sublinha que é ali, na gestão do corpo, da vida, onde tudo se joga: uma biopolítica, portanto. McQueen assinou já outras obras, enquanto artista plástico, nas quais a violência exercida sobre o humano constitui ponto essencial da refl exão - veja-se "Western Deep" (2002), descida ao fundo de uma mina na África do Sul.

A obra plástica de McQueen tem como protagonista o corpo, mas este politicamente investido, lembrando as teses de Michel Foucault para quem, já em 1974, a "luta pelos corpos" fazia da sexualidade um problema político. A condição de negritude do artista passa por algumas das suas obras mais signifi cativas, de "Bear" (1993) - o fi lme de Genet ecoa aqui - a "Western Deep", passando por "Girls Tricky" (2001) ou ainda por "Exodus" (1992/ 1997). Luta pelos corpos, corpos que lutam e suam, explorados, colonizados. Corpos que cantam e caminham, em êxodo. Corpos que devêm escultura, como em "Deadpan" (1997), "remake" de uma cena de "Steamboat Bill Jr.", na qual um impávido Buster Keaton é atravessado pela fachada de uma casa - o agora cineasta manifestou o desejo, impossível, de ter como argumentista de "Fome" o escritor e dramaturgo Samuel Beckett (1906-1989), de quem o único fi lme, "Film" (1965), tem como protagonista Keaton. E há ainda o corpo de "Illuminer" (2001), vídeo no qual se observa, no escuro de um quarto hotel, McQueen deitado numa cama, sendo a sua presença apenas perceptível através da luz emitida por um televisor, onde passa uma reportagem acerca da presença dos exércitos britânico e americano no Afeganistão.

"Fome" pode ser assim visto como um prolongamento natural da obra plástica do artista. A proximidade aos corpos, a atenção às questões políticas, a forma de fi lmar - o grande plano - e ainda a tentativa de colocar o espectador dentro da acção, sobretudo através da escala do ecrã, são características de trabalhos anteriores de McQueen que podem ser detectadas na longametragem. Menos detectáveis são as infl uências exteriores, mas elas podem ser intuídas aqui e ali. O realizador, respondendo a uma pergunta relativa às suas infl uências no caso de "Fome", afi rma, em entrevista à revista "Cahiers du Cinéma": "A grande referência é a pintura, mais particularmente a pintura espanhola, e sobretudo Velázquez - a sua forma de usar a luz natural em interiores, de uma maneira realista, mas que, de alguma maneira, dramatiza a visão, dá-lhe uma forma de gravidade e ao mesmo tempo atribui uma dignidade a tudo aquilo que ele representa, compreendendo o que poderia parecer horrível ou grotesco."

Velázquez, mas também o Van Gogh dos últimos dias, o de "Campo de Trigo com Corvos" (1890), visão próxima da morte, e o Grünewald do "Altar de Isenheim" (1512-1516). E mais perto de nós, Richard Hamilton e a pintura "The Citizen" (1981-83), uma obra baseada num documentário acerca do "dirty protest" realizado na prisão de Maze, na Irlanda do Norte, ou os murais realizados com lama por Richard Long. A abstracção a que chega o fi lme recorda, por outro lado, a estética de outro cineasta, Alexander Sokurov, o qual, em conversa com Maria João Madeira e Luís Miguel Oliveira (Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1999), sublinha tentar dar às suas personagens "uma vacina contra a morte, para que eles fi quem eternos." Bobby Sands foi eternizado por Steve McQueen. A sua fome é, por instantes, a de todos nós.

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