"Não sei o que as pessoas vêem em mim"

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João Perry regressa ao teatro, com "('Selvagens') Homem de Olhos Tristes", de Händl Klaus. O que é que ele fez durante estes anos?

A manhã está luminosa, quente. No 4º piso de um antigo edifício não distante da Baixa de Lisboa, João Perry recebe o Ípsilon com um sorriso aberto, apressando-se a dispor numa mesa uma bandeja com bolinhos e frutas cristalizadas. A casa é tão encantatória quanto o seu espírito, jovem e feliz aos 67 anos. 

 

A sua timidez, o medo da exposição pública, fica agora à soleira da porta. A conversa flui sem uma ordem organizada, recuando e avançando de acordo com as memórias que saltam sem pedir licença. A infância vivida nos teatros, as recordações dos actores que também foram seus mentores, as experiências religiosas, a primeira encenação em Nova Iorque. Mas também as viagens, a fotografia, a música, a pintura, a escultura, os livros. A sua casa reflecte tudo isto. Em quase todas as divisões há estantes (ordenadas por géneros) cheias de livros, arrumados por ordem alfabética. Nas paredes, fotografias de Jorge Molder e obras de Ângelo de Sousa. Em recantos, esculturas de José Rodrigues e objectos que testemunham as inúmeras viagens que realizou. 

 

Após uma "pausa para viver", que se prolongou por seis anos, o actor regressa agora aos palcos, com a peça "(Selvagens") Homem de Olhos Tristes", do austríaco Händl Klaus, numa encenação de João Lourenço, no Teatro Aberto, em Lisboa. Quando o espectáculo sair de cena fará nova pausa para "viver". Há alguns anos que prepara um regresso à Índia. 

 

A última peça que fez foi "A Visita", de Eric-Emmanuel Schmitt, no Teatro Aberto, em 2001, e desde então não voltou a fazer teatro. Por que é que ficou afastado tanto tempo?

 

 

Não sou de uma grande fidelidade. Quando estou a fazer faço obsessivamente e depois faço pausas grandes para viver. 

 

O que fez nesta pausa?

 

 

Fiz televisão, dirigi uma novela para a SIC, "O Jogo". Foi deitada ao ostracismo não sei por que razão. Era uma história e as histórias estão a cair em desuso. 

 

Foi fácil convencê-lo para fazer esta peça no Teatro Aberto?

 

 

Foi fácil. O João [Lourenço] já me tinha dado várias peças a ler. Ele é muito meu amigo e tenta tirar-me do limbo onde de vez em quando me fecho. Por vezes, não me apetece fazer peças com muitas pessoas, é dispersivo. Eu pago um luxo de fazer só uma coisa de cada vez, uma fidelidade momentânea. 

 

Cativou-o a personagem que interpreta, um médico?

 

 

Sim. No mesmo dia devo ter lido quatro vezes a peça. Não é de fácil adesão à primeira, mas é motivadora. 

 

O que o motiva mais no teatro?

 

 

Fazer coisas diferentes do que fiz. Gosto do teatro como uma prática de interrogação. 

 

Descende de uma família de actores. Que memórias guarda da infância?

 

 

Tenho pouca memória da escola porque a infância foi viver naqueles horários dos teatros, até à meia-noite, comer sandes com passarinhos fritos, que é uma coisa nefasta!  

 

Convivia com pessoas mais velhas. Ia todas as noites para o teatro com o seu pai?

 

 

Não. O meu pai morreu quando eu tinha 9 anos. Quando vivia só com o meu pai ia todos os dias, quando passava a viver com a minha mãe deixava de ir e quando eles estavam juntos ia de vez em quando. Nada era constante. Como resultado final isso fez com que eu seja uma pessoa que não me fixo em nada. Porque sei que se perde de imediato. Estamos sempre a fechar e a abrir a mão. E eu abro mão sem qualquer saudade daquilo que tive. 

 

O passado não o incomoda.

 

 

Não tenho um propósito nostálgico, vingativo. Estranhamente, noto que após as entrevistas que tenho dado omito sempre as partes mais desagradáveis do passado porque são de somenos. 

 

Fui católico durante um período reduzido de tempo. Cheguei a ajudar à missa e fiz um peditório para uma capela no corredor da escola. Na altura acreditava mesmo. 

 

Quando é que deixou de acreditar?

 

 

Durante o liceu. Num Natal eu e uns amigos fomos entregar uns cartuchos de feijão e bacalhau a um bairro na Curraleira e vimos um homem que dormia em cima de pedras e latas porque a água circulava por baixo delas. Senti-me tão pateta, com os cartuchos na mão. Foi uma interrogação enorme. A fé é uma necessidade de explicar o inexplicável. Possivelmente eu não tinha essa necessidade. Não percebia por que é que as pessoas se sujeitavam a ser vítimas do destino. Nunca fui vítima do destino. O destino aparecia e eu jogava à bola com ele. 

 

Brincava…

 

 

Brincar é a palavra certa para a minha existência e para a minha profissão. No fundo é brincar de, fingir de, mentir ao serviço do propósito, ser outro. 

 

Liberta-se facilmente das personagens?

 

 

Agora sim. Houve uma altura em que ficava mais fragilizado. Lembro-me de uma vez, no final de uma temporada, sentir enorme saudade. Como se tivesse largado alguém que amasse numa estação de comboio. Depois percebi que isto faz parte da minha existência, mudar de pele. 

 

Estreou-se no teatro aos 13 anos na Companhia Amélia Rey Colaço/Robles Monteiro. Como é que passou dos bastidores e da plateia para o palco?

 

 

Não queria nada passar para o lado da moldura. Nunca tinha dito poesia em festas. Nunca mostrava habilidades desse tipo. Tinha vergonha até, era muito inibido. Ainda guardo um bocado disso. 

 

O convite partiu da Amélia porque eu passava a vida no teatro. 

 

Sempre sozinho?

 

 

Por vezes ficava com as costureiras ou com os actores e actrizes. Ficava a vê-los pintarem-se, perguntava-lhes coisas inusitadas. Era muito divertido. 

 

Convivia pouco com gente da minha idade. Não achava graça. E brincava pouco. As brincadeiras que fazia eram isoladas, como caçar moscas e assim. Depois dos sete anos gostava de ler banda desenhada. Nas férias afastava-me do teatro, mas continuava a ouvir as mesmas histórias em casa. Os actores são um pouco obsessivos. 

 

Agora não sei se é assim, não convivo muito com o meio. Mas naquela época havia uma mística em relação aos actores. Não iam aos cafés, mantinham-se isolados. Ouvia muitas vezes a Amélia dizer "não se exponham muito". Não sei se era um propósito total ou se era uma noção da fragilidade. 

 

Então o convite de Amélia Rey Colaço surgiu naturalmente. Passava a vida no teatro...

 

 

Ainda fui sujeito a umas leituras e passei nesse crivo. A peça chamavase "Rapaziadas", do Iriarte. Nesse mesmo ano (1953) fiz mais duas peças para crianças no Teatro Nacional. 

 

Poucos anos depois começou a receber convites para trabalhar com diversas companhias, não foi?

 

 

Andei em digressões pelo país. Também ajudava na parte técnica. Atava as gambiarras, aprendia a mexer nos projectores, nas luzes, coleccionava lâmpadas que iam fundindo... Guardava tralhas, pregos, bocados de corda. Ainda tenho montes de corda de puxar cenários. 

 

Mais tarde, já em 1970, foi para Nova Iorque com uma bolsa da Fundação Ford, investindo na sua formação.

 

 

Caiu-me no prato. Não sei o que é que as pessoas vêem em mim. 

 

Conhecem o seu trabalho.

 

 

Eu não conheço o meu trabalho. Quer dizer, raras vezes tenho oportunidade de me ver. 

 

Nem os filmes, os trabalhos em televisão?

 

 

Vi parcialmente e isolado. Nunca vi um filme meu com público à volta. Sentiria o chão a engolir-me e quando se abrissem as luzes quereria ter uma cara diferente. 

 

Uma das coisas mais nefastas na televisão é ser identificável. Não gosto que falem comigo na rua como se eu fosse a personagem que estou a fazer. Isso inibe-me imenso. 

 

Esse risco da exposição nunca o inibiu de fazer muitos trabalhos em televisão.

 

 

Por motivos vários. Porque gosto e em certas alturas porque precisava de sobreviver, tanto a níveis alimentares como culturais. 

 

E tem espírito de coleccionador.

 

 

Gosto muito de olhar e da companhia dos objectos. São objectos silenciosos e interrogativos. E há também uma parte frustrada em mim sobre as artes que admiro. 

 

A fotografia...

 

 

Mas também a pintura, a escultura. Nos últimos tempos tive possibilidade de me ilustrar mais sobre música. 

 

Que géneros gosta de ouvir?

 

 

Depende do que estou a ler ou do que vejo em cinema. Isso faz despoletar uma procura da fundamentação sobre determinada época. A ignorância tem um lado interessante, que é a novidade. Quem tem a curiosidade de se ilustrar tem o tempo quase sempre preenchido. 

 

A primeira encenação que fez foi em Nova Iorque.

 

 

É uma coisa esquisita, não é? Fui para lá com a bolsa da Fundação Ford e depois pedi uma bolsa de reforço à Gulbenkian. Estive a trabalhar com um grupo de professores de técnica teatral, a maior parte deles regressados da Europa onde tinham trabalhado com o Peter Brook. Estavam ligados ao La MaMa Experimental Theater. 

 

No primeiro mês passei o tempo a vê-los fazerem exercícios e a tentar acompanhá-los porque eles já estavam em graus mais elevados. E inibia-me sempre de participar activamente. 

 

Ao fim de quatro, cinco meses a [professora] Ellen Stuart perguntou-me se eu não gostaria de encenar. 

 

Achei estranho. Estava ali para me aperfeiçoar como actor e não para dirigir. Pedi-lhe tempo para pensar. 

 

Aceitei o convite e pensei fazer algo com o qual me identificasse. Passei um fim-de-semana a construir uma peça a partir de textos de Fernando Pessoa. Chamei à peça "Stolen Words", que era realmente um facto. 

 

Apresentei a proposta e tive de fazer uma coisa sinistra, as audições. 

 

É ai que surge Nick Nolte, que se estreou em Nova Iorque com a sua peça.

 

 

Na altura ele era manequim. Mas já tinha formação de actor. À partida eu deveria ter escolhido colegas meus, mas nunca fui muito fiel a compromissos. Quando enceno fico cego às amizades, aos pedidos. O espectáculo realizava-se em três palcos, com três actores, e o Nolte dizia o texto na totalidade, no palco principal. O "Village Voice" falou mal da peça, disse que era datada. 

 

Pouco depois fui convidado para fazer outra peça e isso assustou-me porque o sistema obrigava-me a falar com muita gente, a ir a almoços. Eu não estava preparado para tanta exposição. Estava ali para aprender e não para encenar. 

 

A primeira encenação em Portugal só aconteceu depois do 25 de Abril, com "A Festa dos alunos do colégio dos alfinetinhos de dama.". O título era enorme, uma moda na altura. Foi feita com um grupo de actores que se juntaram para esse espectáculo, no Villaret, com música do Sérgio Godinho. A crítica que gostava de mim como actor, disse então que eu era encenador anarquista, um niilista, vários epítetos. 

 

Tratava-se de uma colagem de textos?

 

 

Textos que eu queria queimar. Fiz muitas peças do Bernardo Santareno e quis libertar-me daquela reincidência textual. Geralmente matamos os pais para sermos adultos. 

 

Uma das encenações que mais reconhecimento lhe deu foi "Zerlina" (1988/1993), com Eunice Muñoz. Mas fez poucas encenações ao longo destes anos.

 

 

Quatro ou cinco. 

 

Porque não fez mais?

 

 

Trabalho se me convidarem e se não me condicionarem muito. Quando enceno quero sempre criar condições ímpares para os actores dar-lhes uma boa cobertura visual, treinos em várias áreas, elucidação literária. 

 

Participou em "Passa por mim no Rossio", de La Féria, interpretando as personagens de João Villaret e Almada Negreiros. Era a primeira incursão na revista?

 

 

Já tinha feito uma revista no Teatro ABC, "O fim da macacada", em 1973. A censura cortou quase todos os números em que eu entrava. 

 

Sente que há um certo preconceito, não apenas por parte dos actores mas também de uma parcela do público de teatro, em relação aos espectáculos de revista?

 

 

Praticamente já não há revista. Os grandes actores do passado fizeram revista. Não era uma forma de expressão criticável. Lembro-me de ir para a caixa do ponto do Teatro Maria Vitória. Tinha uma almofadinha e via os espectáculos dali. Recordo-me da Mirita Casimiro, que punha um rímel exótico nas pestanas. O rímel desfazia-se com uma vela e ela fazia umas bolinhas na ponta das pestanas. As pessoas da revista eram muito afectivas. 

 

Saiu do elenco residente do D. Maria em 2001. Nessa época, aquele teatro era tido como uma máquina pesada.

 

 

E continua a ser. A começar pelo espaço físico. Achei um disparate a forma como a reconstrução foi feita depois do incêndio. É uma abjecção arquitectónica. Porque é que não se construiu um teatro mais democrático? Na Alemanha vi teatros reconstruídos em que as pessoas estão bem sentadas, têm boa acústica, boa visão do palco. 

 

Foi convidado por Santana Lopes, enquanto secretário de Estado da Cultura, para dirigir o Nacional.

 

 

Fui convidado três vezes. Também pela Teresa Patrício Gouveia e pelo Manuel Maria Carrilho. Não sou muito de fiar. Não gosto de abrir portas, nem de receber pessoas à porta. 

 

E tem de se ir a despacho e apresentar um currículo. Um ignorante autodidacta dificilmente dialoga com ignorantes encartados. 

 

Mesmo tendo recusado uma vez insistiram em convidá-lo mais duas vezes.

 

 

Na segunda vez já era uma segurança, do género "este vai dizer que não". 

 

Quando a Teresa Patrício Gouveia me convidou cheguei a ir mais longe: contactei os grupos independentes, disse que tinha sido convidado, que entendia que a função do Nacional era fazer co-produções. Depois a Teresa escolheu um sub-director e as conversas com essa pessoas não correram bem. 

 

Ainda convidei a Eduarda Dionísio para sub-directora, mas ela não estava disponível. Não foi a altura certa. Além disso, ia ficar com muito mau feitio, não ia ter tempo para ler, para viajar. 

 

Disse numa entrevista que sobreviveu na profissão sem fazer "cedências".

 

 

Na verdade, fiz algumas. Engoli uns sapitos, pequenos e horríveis. Fico com mau feitio quando isso acontece. 

 

Zangado consigo próprio?

 

 

E chateio toda a gente. 

 

Que diferenças encontra entre o teatro que se fazia há 20 ou 30 anos e o que se faz agora?

 

 

Da actualidade posso falar pouco. Aporto a um cais, descarrego as malas com o auxílio dos bagageiros e depois volto a embarcar. Tenho as piores experiências das pessoas que ficam como funcionários, à espera da reforma, desse fatalismo a meia luz. Prefiro estar com as luzes acesas e errar do que poupar para não me cansar. 

 

No cinema trabalhou com vários realizadores. Fez apenas um filme com Manoel de Oliveira, "Vale Abraão", mas foi um dos cineastas com quem mais gostou de trabalhar.

 

 

É uma pessoa fascinante. Mas acho que não correspondi ao que ele esperava de mim. 

 

Porquê?

 

 

Porque não percebo bem a linguagem cinematográfica, embora goste de fazer cinema. O Manoel é uma pessoa que possui algo que eu tenho como apanágio de criação. Ele interrompe uma filmagem, com os custos inerentes a isso, porque falta um cinto com uma borla específica que ele tinha pedido e não lhe trouxeram. 

 

Criou-se logo uma empatia.

 

 

Essa teimosia, esse acreditar que aquilo só ficará inteiro aos olhos da imaginação leva tempo. 

 

Chegou a experimentar a fotografia. E a escrita?

 

 

Quando se é adolescente escreve-se sempre aquelas coisas entrar em diálogo com alguém ou tentar entrar em diálogo consigo próprio queixando-se de alguém que não entrou em diálogo. Essas coisas morrem dentro das gavetas. Um dia uma pessoa faz uma limpeza e rasga-se. 

 

Arrumei várias casas de pessoas que desapareceram e deparei-me com coisas insuspeitas sobre elas.

 

Não quero dar azo a que isso aconteça com outrem. Quando eu morrer é o fim. Não quero lápides. Essa expectativa de passar granito não é coerente. A minha profissão é fazer e deitar fora. Desaparecem os cenários e ficam apenas as fotografias, que um dia vão também desaparecer.
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