Zé do Caixão: A encarnação do demónio reza à noite e gosta de jantares de família

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José Mojica Marins continua a ter pesadelos, muitos pesadelos. É desses sonhos "deliciosos" que resgata o grotesco quotidiano de Zé do Caixão, esse alter-ego obcecado pela busca da mulher ideal para conceber um filho. Aos 72 anos, apurou a receita que utilizou em mais de 40 filmes: "mulheres bonitas, uma sexualidade intensa e muitas cenas nojentas". Depois de ser exibido em Veneza, "Encarnação do Demónio" é destaque no MOTELx, o Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa. Este é o mundo do realizador a quem já chamaram o "Glauber Rocha do cinema de horror brasileiro".

O pai queria dar-lhe uma bicicleta. O brasileiro José Mojica Marins tinha dez anos e outras vontades. Pouco depois ouviria o padre das redondezas chamar-lhe "débil mental". Anos mais tarde, viveria o sonho revelador. E nas últimas seis décadas não parou. Dormiu sempre com um caderno na cabeceira, com a cabeça a fervilhar. Realizou mais de 40 filmes de terror (alguns ainda à espera de edição), participou em séries televisivas, programas de humor negro.

Escreveu livros de banda desenhada, outros só de texto, filmou videoclipes eróticos com animais, dirigiu filmes pornográficos. "É tudo fruto dos meus pesadelos", diz durante a conversa com o Ípsilon, a propósito da sua vinda a Lisboa para o MOTELx, o Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa (de 3 a 7 de Setembro, no Cinema São Jorge), onde dá um workshop, uma masterclass e leva "Encarnação do Demónio", filme que está também no Festival de Veneza, fora de competição. "É uma honra e um orgulho, mas faço-o com o mesmo estado de alma com que entro na gruta mais cavernosa de um bairro pobre de São Paulo."

A família vivia num anexo situado nos fundos do antigo cinema Santo Estêvão, no bairro da Lapa, em São Paulo. Era ali que o mundo do primeiro realizador de longas-metragens de terror do Brasil acontecia, feito de imagens sobrepostas. "Desde 1939, tinha eu três anos, só via aquele cinema à minha frente."

Parte da infância começou a ser transposta para a tela, vivia das personagens, recriava-as. E matava-as no segredo da imaginação, invariavelmente. "Era muito importante, muitas histórias, muitos mundos". O pai insistiu na "bicicreta", Mojica voltou a dizer que não. Queria fazer cinema. "Ele cedeu, deu-me uma câmara de filmar de 8,5 milímetros, na altura ainda não havia super 8."

Primeiro filmou o pai, a mãe e o cinema. A seguir os cadernos já repletos de imagens demoníacas. "Depois comecei a olhar para os desenhos que tinha feito". Chamou à montagem "Juízo Final", "ironicamente". A história já prenunciava o universo grotesco em que haveria de movimentar-se. "Era sobre uma invasão de extraterrestres em forma de caixão. Os bons seguiam numa nave, os maus ficavam em terra."

Mujica aprimorou-se. Seleccionou imagens, imprimiu-lhe um toque próprio. O pai acrescentou uma banda sonora religiosa. E chamou o padre lá do bairro para uma primeira apresentação. Foi quase uma noite de gala. "O padre levantou-se a meio, chamou o meu pai e disse-lhe: 'Sr António, o seu filho é um débil mental'."

Fita manchada de sangue e vísceras

O padre saiu, e abriu-se a carreira de José Mojica Marins. O Zé do Caixão haveria de surgir, anos mais tarde. "Foi aí que me dediquei a esta saga, sempre com o apoio dos meus pais." E com recurso a quilómetros de fita manchados de sangue, de vísceras. Animais arrepiantes e requintados instrumentos de tortura. "E mulheres bonitas", acrescenta.

O dia 11 de Outubro de 1963 foi marcante. "Tive um pesadelo horrível, delicioso." Um vulto surgiu a indicar-lhe o seu próprio túmulo. Escorreu rios de suor, tremeu. Rejubilou, depois: "Nasceu o Zé do Caixão." O nome de baptismo, parte de uma lenda negra no resultado, luminescente na narrativa. "É o nome de um ser que viveu milhões de anos longe do planeta e que volta em forma de luz." Paradoxalmente, Zé do Caixão apresenta-se todo vestido de negro. "É uma cor que imprime poder." Ora, como a criatura luta contra a demagogia e a pequenez quotidiana e pela justiça, apresentou-a ao mundo em "À Meia-Noite Levarei Sua Alma", a oitava longa-metragem - foi uma premoninação, descobriu o caminho.

Mojica dotou a filmografia de uma ordem, uma cadência. A missão estava, porém, incompleta. Faltava um filho, o tal que continuaria a tarefa de limpar o universo de mediocridade. "Era preciso encontrar a mulher ideal para o Zé do Caixão." Outros tantos filmes adiante, "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver" ,1967, é o take 2. Na ficção, Zé do Caixão foi preso. Na realidade, Mojica tinha dificuldades económicas. Agarrou-se aos livros de banda desenhada, sobreviveu aliando o toque de terror a cenários de pornografia comercial - "Dr. Frank na Clínica das Taras" ( 1986) ou "Estranha Hospedaria dos Prazeres" (1977), por exemplo. E dedicou-se a coordenar vídeos eróticos com animais. "Está tudo mais ligado do que as pessoas pensam." Agora, em "Encarnação do Demónio" encontrou a redenção. "A maldição do Zé do Caixão acabou." E completou a trilogia. Esta, pelo menos. "Ainda tenho ali nuns caixotes uns 10 ou 15 filmes para lançar, há gente interessada, vamos ver."

Mulheres bonitas, sexualidade e cenas nojentas

A filmografia de Mojica segue uma trilha recorrente. Em cada filme, um laivo de libido num gesto de horror. Há corpos esbeltos, excrescências, insectos. Mulheres bonitas em tangos de sangue. Há um movimento angelical e um grito demoníaco. Um gemido, uma voz cavernosa, peles macias. O desejo. Ouve-se um "Bela Lugosi's Dead" feito com funk de favela e pontuado por baratas, aranhas e escorpiões. Outro grito. De novo o desejo, lancinante. Um baixo-ventre que se oferece. Uma procura. Uma busca com 44 anos - o sémen tem de dar frutos. É urgente um filho, é urgente encontrar a mulher ideal para o conceber. Uma estranha espessura.

José Mojica Marins domina esta viagem pelas vísceras do pesadelo. E sabe-se também dominado por esse outro homem, o heterónimo, às vezes personagem - o Zé do Caixão, um cangalheiro céptico que não acredita nem em Deus, nem no Diabo mas que vive obcecado com a ideia a mortalidade e julga que a única maneira de a garantir é pelo sangue e pela hereditariedade passando os filmes à procura da mulher perfeita com quem procriar. Conhece bem os ingredientes, sintetiza-os. Já lá vão mais de 40 anos e outras tantas películas. "Qualquer filme bom tem de ter mulheres bonitas, uma profunda sexualidade e cenas nojentas."

É dessas matérias que é feito "Encarnação do Demónio", que, apesar de estar fora de competição, passa no Festival de Veneza. O filme que esperou 20 anos para tomar forma é a saga de Zé do Caixão. Outro passo macabro nessa busca. Uma renovada demanda pela mulher ideal -"sem sentimentos nem crendices" - para gerar o filho. A mulher, "só tem de ser bonita e sensual". O filho, "justo e implacável". Como os progenitores. O resto serve de tapete para desenrolar a trama: muitas mortes pelo meio. Sempre com requinte. De malvadez. Uma mulher de favela entra em cena. Exala sensualidade. Oferece-se, despe-se. "Faça seu filho em mim." Zé do Caixão permanece sentado no trono de despojos. Leva-lhe as infindáveis unhas a um peito, afaga-o. Ela treme, ele diz que não. "Era muito nova, tinha ideias feitas. A mulher que o Zé do Caixão procura tem de ser céptica." Tarefa difícil, pelo menos na tela.

Sete mulheres, sete filhos, nove netos

Mojica Marins já teve sete mulheres "com papel e tudo". Tem sete filhos, nove netos. Fala com voz grave, doce. Conta histórias. Acredita em Deus e tem 72 anos. Adora jantares de família, ri quando pega nos netos ao colo. Uma vida como a dos outros, um desconcertante desdobramento de personalidades. "Sou um homem frágil, que reza todas as noites e tem um prazer tremendo em ver a família à mesa." Do outro lado do quotidiano, ri-se Zé do Caixão, o homem que nasceu à noite, o filho do pesadelo. Uma criatura totalmente céptica, sem afecto, com poder. As crianças são os únicos amigos. "São puras, têm filtros de inocência". Mais uma facada, um jorro de massa encefálica. Uma tortura. "Só quer um mundo justo, só quer um filho que o ajude nessa tarefa, independentemente das mortes que isso tenha de implicar". E implica.

José Mojica Marins diz com orgulho que foi o primeiro realizador de longas-metragens de terror no Brasil. "Penso mesmo que ainda sou o único." Está aliviado. O argumento de "Encarnação do Diabo" tem 20 anos. Por diversas vezes, um vento aziago impediu o início das filmagens. No ano passado conseguiu cerca de 400 mil euros, resgatou a capa preta e a cartola... começou a filmar. E a representar. Por estes dias, nos interstícios da enxurrada de homenagens, pedidos de entrevista e distinções em festivais de cinema, Mojica anda a mastigar outra ideia na cabeça. É coisa antiga, inadiável. "Para o próximo ano vou fazer uma excursão." Um périplo por 70 países, uma espécie de romaria dos adeptos de terror. "Hei-de ir com colaboradores e fãs. Tenho muitos apelos nesse sentido."

Comprimidos e pesadelos

O mediatismo alcançado pela última longa-metragem fizeram-no reforçar uma impressão antiga, às vezes acanhada. "Há muita gente que gosta das bizarrias e das coisas estranhas que tenho feito na vida." Em Portugal também. Sentiu-o quando foi distinguido no Fantasporto, em 2000. A voz é sempre grave, cavernosa. O tom, delicado - mesmo nos filmes, quando lança sentenças de morte ou de tortura. "Eu realmente sou muito diferente do Zé do Caixão." Na tela, é sempre Mujica que dá corpo à personagem. Na vida, o Zé do Caixão só existe à noite. O gosto por crianças é o único ponto em comum. "Eu sou um homem normal, gosto de tomar cerveja no boteco." E de ir à padaria de manhã. E de contar histórias aos netos. À noite, antes dos pesadelos, revê "com uma frequência inacreditável" um filme "desse puta realizador" - "Rosemary's Baby", de Roman Polanski.

Os sonhos macabros vêm a seguir.

"Às vezes viajo por infernos tremendamente agradáveis." O realizador sofre de insónia crónica. Desde os 18 anos que toma Lorax, um medicamento italiano prescrito para neurose de guerra. "Sou dependente dele para dormir." A composição química do produto provoca-lhe pesadelos, a génese da inspiração. "Não são sonhos normais, são férteis: condenam-me e libertam-me." Na cabeceira, está sempre um caderno. "Acordo estremunhado por algum sonho e desato a escrever." Nos dias seguintes, as imagens começam a tornar forma na cabeça, surge a trama, o fio da história. "Aí, filmo."

A objectiva segue uma rota que é também imagem de marca. Um movimento pendular, um destino. Oscila entre o belo, o horrível. O sensual e o grotesco, uma dança entre a vida e morte. Mojica, o homem, prefere o primeiro estado. "A iminência da morte é arrepiante." Recentemente sentiu a vida escapar-lhe. Percorreu os limites da existência. Diz que se viu já do lado de fora do corpo. Solidão, desespero. "Sentia dor, muita dor."

Foi há quatro anos. O realizador teve uma paragem cardio-respiratória. "Fiquei fora do ar por quatro minutos." Reconsiderou conceitos e viu o eco das cavernosas gargalhadas do heterónimo-personagem-fétiche perderem fulgor. Fora da tela, os extremos têm outros contornos. "Não é agradável, a morte é horrível." Não pode ser agradável, repetiu. Mas continuou a filmá-la, "apesar da dor que isso causa".

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