A melancolia do assassino em férias

A beleza costuma estar nos olhos de quem vê, como se diz, e é por isso que essa cidadezinha quase de conto-de-fadas que é Bruges é uma maravilha para Ken e uma seca brutal para Ray. Ken passeia, vê as vistas, sobe às torres dos campanários, lê clássicos da Penguin. Ray resmunga, quer ir para o pub beber umas bjecas, engatar miúdas numa rodagem que por ali anda.

Ken e Ray podiam ser as duas facetas do "bife" médio de férias na Velha Europa, ou uma versão irlandesa da velha peça de Neil Simon "Mal por Mal Antes com Elas" ( Jack Lemmon e Walter Matthau como melhores amigos que não conseguem viver juntos). Não são porque na realidade são assassinos contratados, mandados para Bruges fazer turismo na sequência de um contrato que correu mal enquanto esperam instruções do chefe. Mas não faz mal, porque a miúda que Ray engata é uma dealer, há um anão cocainómano racista na rodagem e estas férias forçadas são muito menos levezinhas do que tudo isto pode dar a entender. "Em Bruges" pode parecer a mais recente variação sobre os criminosos filósofos de Tarantino ou sobre os criminosos coloridos de Guy Ritchie, mas é só aparência. Por baixo das conversas de pub repletas de coloquialismos profanos e das bebedeiras ou pedras mais ou menos absurdas esconde-se uma peculiar meditação sobre a culpa dobrada de viagem iniciática, deslumbrantemente entretecidas pela mão do dramaturgo irlandês Martin McDonagh (de quem ainda há pouco tempo se encenou por cá "O Homem Almofada"), a fazer a sua estreia na realização. O hedonismo propulsionado a cerveja e a impulsividade de Ray, "herói" relutante de um filme que não está nada interessado em heróis, escondem a fragilidade de um miúdo que nunca cresceu e o desespero de uma fuga para a frente maculada pelo remorso, e o par de dias durante a qual a acção decorre tornam-se numa espécie de aventura surreal que o forçam a assumir a sua responsabilidade.

E McDonagh usa Ray como "âncora" de uma história turbulenta sobre gente que começa a olhar para lá do seu mundo habitual, gerindo com destreza as guinadas de tom que levam "Em Bruges" da comédia truculenta ao policial violento passando pelo existencialismo em surdina. É, claramente, um filme de dramaturgo: "escrito" até à quinta casa, milimetricamente planeado nas rimas e referências internas e no arco das personagens, mais interessado em baralhar as cartas das figuras de estilo dos géneros com que brinca do que em seguilas à risca. E, sobretudo, é um filme extraordinariamente atento aos seus actores, desafiando-os a acompanhar essas guinadas sem nunca perder o fio da humanidade das personagens: tire-se o chapéu a McDonagh por conseguir, ao primeiro filme, sacar interpretações notáveis de Colin Farrell, Brendan Gleeson e Ralph Fiennes, todos a jogarem ao mesmo tempo a favor e contra as suas imagens de marca, capazes de darem vida às palavras de McDonagh muito para lá da superfície, alerta, atentos, empenhados como não os víamos há muito tempo.

Claro que, como filme de dramaturgo, não é grandemente "visual" - não é, felizmente, teatro filmado, mas cinematograficamente é mais cumpridor do que inspirado, limitando-se a ilustrar a história que se conta. Mas, quando a narrativa é boa e os actores melhores, não é preciso ser um cineasta de eleição; basta saber o que se está a fazer. Martin McDonagh sabe, e isso chega para fazer de "Em Bruges" uma pequena surpresa que merece ser descoberta.

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