Depois do presidente

Chama-se a isto a proverbial "batata quente": estreado há dois anos no Festival de Toronto, "Morte de um Presidente" atraiu desde logo a polémica, com manifestações de protesto de distribuidores, comentadores e políticos e defesas apaixonadas da liberdade de expressão. Tudo isto por tomar como ponto de partida o assassinato do presidente norte-americano George W. Bush à saída de um discurso dado em Chicago, sob a capa de um (falso) documentário sobre o crime e a sua investigação, realizado dois anos depois: um 2008 que, à altura da estreia do filme, era ainda futuro e, agora que o filme chega a Portugal (ano e meio depois da sua apresentação no IndieLisboa), é já presente.

Não faltou quem se elevasse contra o "mau gosto" da premissa do filme, nem contra a manipulação de imagens de arquivo (inclusive do próprio presidente Bush e do vicepresidente Dick Cheney) para os seus fins ficcionais - e que, ao fazêlo, tenha passado ao lado do metacomentário que Gabriel Range faz. Porque "Morte de um Presidente" é muito menos um filme sobre o assassínio de um presidente do que uma meditação sobre a manipulação na actual paisagem política, social e cultural norte-americana.

Que o filme seja uma produção inglesa não é corpo estranho a essa meditação - todos sabemos como a tradição jornalística e documental britânica colocou sempre particular acento na análise e na isenção. E o facto de Gabriel Range jogar também com essa tradição para baralhar as pistas do seu objecto apenas lhe dá uma dimensão textural adicional: ao mesmo tempo que introduz toques de "CSI" e estrutura o filme com a linguagem de uma imparcial reportagem investigativa, o realizador utiliza a manipulação audiovisual para denunciar a progressiva erosão da imparcialidade e isenção dos meios de comunicação contemporâneos. E é muito mais isso que interessa a Range, mais do que entrar em polémicas sobre a "propriedade" de assassinar ficcionalmente uma personagem real: utilizar o "era uma vez" da ficção para questionar a realidade, partir de um pressuposto plausível para projectar um cenário a partir dos dados de que se dispõem - nem estamos assim tão longe de um analista de segurança como isso.

Claro que "Morte de um Presidente" não é um filme que concorde com a administração Bush: feito claramente sob o signo de Guantánamo e das restrições das liberdades individuais postas em prática desde o 11 de Setembro, questiona os resultados dessas restrições e coloca a possibilidade de um novo atentado nos EUA vir a darlhes ainda mais força; questiona a validade da paranóia securitária, e, escaldado pela ausência de armas de destruição maciça no Iraque e certamente pelo apoio de Tony Blair à invasão do Iraque, questiona o custo humano da política e pergunta se vale a pena inventar um bode expiatório para fins políticos. Mas fálo com uma inteligência muito pouco partidária, sempre partindo do pressuposto que esta gente são indivíduos mais complexos do que a mera redução mediática daria a entender - e aí está mais uma das forças que a sua inscrição na tradição documental inglesa dá ao filme, mesmo que lhe escape por muitas outras paisagens.

O que acaba por desapontar é o modo como esse fôlego teórico e narrativo parece esvaziar-se a partir de meio em direcção ao mero registo de uma investigação policial, deixando em suspenso algumas das pistas mais intrigantes que o exercício de ficção política sugeria - e começamos aí a duvidar se a intenção de Gabriel Range era tão estimulante como parecia ou se não passava de um MacGuffin para construir um filme policial. Mas o que ficou para trás é tão provocador que nem isso nos faz desistir de olhar para "Morte de um Presidente" como objecto de estudo sobre o mundo em que vivemos.

Sugerir correcção
Comentar