Congelados

Já não tínhamos notícias de Alain Resnais há dez anos, quando se estreou "É Sempre a Mesma Cantiga". Reencontramo-lo agora com "Corações", depois de termos falhado "Pas sur la Bouche", que Resnais dirigiu entre os dois e que ficou sem distribuição em Portugal.

Na génese de "Corações" está um ponto de partida familiar: uma peça do britânico Alan Ayckbourn ("Private Fears in Public Places"), o mesmo autor em quem Resnais se tinha baseado para um dos filmes mais célebres (e surpreendentes) da sua obra recente, o díptico "Smoking / No Smoking". Se Ayckbourn começa a ser uma referência familiar no cinema de Resnais, que dizer da família que constitui a sua "troupe" de actores, em especial o trio composto por Sabine Azéma, Pierre Arditi e André Dussollier.

Familiar é também o gosto de Resnais pelo estúdio, e pelo artificialismo daí decorrente. Num movimento de câmara que imaginamos "virtual" (e de fazer inveja aos mais sofisticados efeitos especiais do cinema americano) o primeiro plano faz-nos sobrevoar uma Paris coberta por um nevão e entrar dentro de um apartamento (duas personagens trabalham numa agência imobiliária, e outras duas andam à procura de uma casa para comprar).

"Corações" é um filme de interiores, "lugares públicos" mas também "lugares privados", casas e locais de trabalho, ou ainda um hotel (o bar de um hotel) cujo décor parece uma evocação dos filmes sobre "lugares de convergência" que o cinema francês produziu no anos 20 (pensamos em coisas de Marcel L''Herbier ou Abel Gance). De lugar em lugar, numa narrativa rica em termos de pormenor, um grupo de personagens vai passear a sua solidão, os seus equívocos, e as suas esperanças. Se são "corações", é mais do que evidente que estão, todos eles, "partidos".

O que é notável é que Resnais equilibre de forma tão perfeita o humor e a "gravitas". Começamos a ver "Corações" e vamos rindo - isto tem deixas de comédia, parece uma comédia. Mas vamos rindo menos à medida que o filme avança e o abismo das personagens e das situações se vai expondo.

"Corações" deixa-se invadir por uma angústia que, em termos de correspondência dramática, chega a ser surpreendente (toda a cena, já perto do fim, com o desencontro entre Isabelle Carré e Lambert Wilson, no citado hotel, por exemplo). Quando damos por nós, ou quando o filme quer que demos por nós, há desolação por todo o lado - e lembramo-nos daqueles "filmes-mosaico" em que há sempre um momento em que se faz um "vol d''oiseau" sobre as personagens, numa altura em que está tudo perdido para elas mas há ainda a hipótese de um desenlace salvador.

"Corações" também tem um momento assim, quando tudo correu mal e as personagens estão no mais miserável de si próprias. O sobressalto é que nada mais aconteça, depois, para além do genérico final. Pese toda a graça que lhes proporciona, a graça necessária para transformar uma personagem patética numa personagem comovente (o caso de Wilson), Resnais filma para aprisionar as personagens dentro das casas e dos lugares (ou seja, dentro do filme).

Lembramo-nos das medusas de "É Sempre a Mesma Cantiga", e da sugestão de alguma coisa que paralisava todas as personagens. Aqui, Resnais usa um dispositivo semelhante - as sequências "comunicam" por fundidos encadeados, e em cada um desses fundidos, como um separador, aparecem os pontinhos brancos da neve a cair. É Resnais a congelar os corações.

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