Causas de morte de quase 13 mil pessoas ficaram por esclarecer
Os dados da Direcção-Geral da Saúde (DGS) indicam que, de um total de 12.767 mortos por “sinais, sintomas e afecções mal definidas”, ou seja, por causa desconhecida, apenas 6802 foram autopsiados.
As quase seis mil pessoas que constituíram a diferença foram enterradas sem ficar esclarecido o motivo por que morreram. O número de mortes por causa indeterminada em 2005 (11,9 por cento de um total de cerca de 105 mil óbitos) aumentou comparativamente aos anos anteriores que foram alvo de análise estatística. De acordo com os elementos recolhidos pela DGS, o número de mortes por causa desconhecida, em que não houve tempo de fazer um diagnóstico, foi de 10.032 em 2002, aumentando para 10.889 em 2003. Assinalando uma ligeira descida para 9827 em 2004, voltou a aumentar para perto de 13 mil no ano seguinte, o último sobre o qual existem dados disponíveis.
Em grande parte dos casos, a certidão de óbito que declara a causa da morte como indeterminada é assinada por um médico que não conheceu nem acompanhou o doente, mas que, procurando simplificar o processo para que o funeral se realize com a maior brevidade, resolve classificar a causa do óbito como desconhecida.
Há clínicos, contudo, que optam por essa classificação para pressionar a realização de uma autópsia quando a família não a autoriza, explica Judite Catarino, do Serviço de Epidemiologia da DGS. O caso é então encaminhado para o Ministério Público, a entidade competente, segundo a lei, para ordenar a realização de autópsias nos casos de mortes violentas ou de suspeita de crime. Mas, na grande maioria destas situações em que não há indícios de crime, o Ministério Público indefere os pedidos dos médicos, mantendo-se o desconhecimento da causa da morte.
A lei define claramente que quem pode certificar o óbito é o médico assistente ou o que tenha observado a pessoa nos sete dias anteriores à sua morte. Esta norma, contudo, nem sempre é respeitada, muitas vezes, pela pressa de realizar o funeral.
Para o presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal, Duarte Nuno Vieira, esta situação poderia alterar-se com a criação de uma lei que “obrigasse os médicos assistentes a preencher os certificados de óbito”, já que eles “estão mais informados do que ninguém” e isso certamente contribuiria para reduzir o número de mortes por causa indeterminada.
Em declarações ao PÚBLICO, Duarte Nuno Vieira confirma que “há muitos casos de certificados de óbito preenchidos por médicos que não eram assistentes” da pessoa que morreu, que não a acompanhavam e não sabiam do que sofria. “Isto é benéfico para o país?” pergunta. Não. “Porque as estatísticas da saúde estão viciadas, não traduzem muito a realidade”, observa.
Estas lacunas foram também recentemente referidas ao PÚBLICO por Jaime Silveira Botelho, da direcção de Serviço de Epidemiologia e Estatísticas da Saúde. “Falta formação nas universidades para o preenchimento” destas certidões, considera, salientando o desconhecimento dos médicos sobre a importância do certificado de óbito do ponto de vista epidemiológico”. Silveira Botelho chama ainda a atenção das “muitas implicações” das certidões de óbito, no que respeita a “seguros de vida, heranças e indemnizações, que, por vezes, inibem os médicos de expressarem a verdadeira causa da morte”.
Quando os médicos não conseguem responder às dúvidas quanto aos motivos que levaram ao óbito, as expectativas voltam-se para as autópsias. Mas nem sempre estas conseguem responder às interrogações. “Há casos em que não se pode chegar a uma conclusão segura”, diz Duarte Nuno Vieira. Se o corpo já estiver em decomposição avançada, os exames histológicos não podem ser realizados, os exames toxicológicos podem vir contaminados, a genética também pode já não dar nada e não é possível chegar a conclusão nenhuma. Se o corpo já está reduzido a esqueleto, a autópsia não pode adivinhar. Como é que se vai saber do que é que morreu a pessoa? E manda a legis art que quando se sabe que não é possível chegar a uma conclusão segura, a única forma de ser correcto e honesto é dizer que não se pode concluir quanto à causa da morte”, considera, salientando que “todos os grandes centros mundiais de medicina legal têm 5 a 10 por cento de mortes por causa indeterminada”.
O aumento estatístico de casos de morte indeterminada é também explicado por algumas consequências da reforma do registo e notariado. No âmbito das alterações, foi eliminado um artigo que previa que, em casos excepcionais, a DGS recebesse uma cópia da certidão de óbito, que lhe permitia contactar os médicos ou o Instituto de Medicina Legal, de forma a esclarecer dúvidas quanto às causas da morte.
Sem essa possibilidade legal tudo se complicou, como também reconhece Judite Catarino, admitindo que o rigor dos registos das mortes passe agora a ser maior, tendo em conta a existência de um protocolo recentemente assinado pelos ministérios da Saúde e da Justiça, que permite à DGS obter a cópia das certidões de óbito, em formato digital.
Duarte Vieira defende uma lei que obrigue os médicos assistentes a preencher os certificados de óbito
As autópsias podem também ser inconclusivas no caso de mortes naturais. “Pode não existir nada visível no cadáver”, diz Duarte Nuno Vieira. “Se uma pessoa morre por fibrilhação ventricular, por um transtorno do ritmo cardíaco, como vou ver isso na autópsia?” questiona. “Se tem um historial que aponta nesse sentido pelas queixas e depois pela negatividade do resto da autópsia, posso admitir que é essa a possibilidade, mas há casos que não têm historial, que não há queixas... a medicina não é uma ciência exacta e, apesar de termos avançado muito, ainda há casos em que não podemos ir ao final e a única forma honesta de respondermos é dizermos que foi uma morte de causa indeterminada”, acrescenta o presidente do IML. Citando estatísticas, nota que, “quanto mais exigente é o centro e com mais qualidade trabalha, mais mortes por causa indeterminada tem, porque é mais exigente para dar uma conclusão segura”. Segundo Duarte Nuno Vieira, “em cada cem autópsias, 5 a 10 poderão chegar a este resultado e é saudável que assim seja porque significa que o perito não está a inventar. Naqueles casos, não teve maneira de chegar a uma conclusão segura quanto à causa da morte e a única forma de ser correcto para a justiça é dizer que não sabe”, defende.