Hollywood entrou em Cabul

O suíço Marc Forster ainda tentou, mas não conseguia imaginar dois miúdos afegãos a lançarem papagaios nas ruas de Cabul, nos anos 70, e a falarem em inglês. "E depois, quando na história Amir deixa o Afeganistão e vai para a América, falaria um inglês com sotaque, ou um inglês perfeito?". Para a adaptação do romance "O Menino de Cabul", do afegão Khaled Hosseini, que vendeu oito milhões de exemplares em todo o mundo, e está editado em Portugal pela Relógio D"Água, o estúdio insistiu: "Queriam um filme em inglês, com estrelas americanas". Mas Forster não conseguia. "Pô-los a falar inglês era estranho, achei que só podia fazer o filme em dari [uma das línguas faladas no Afeganistão], e disse-lhes que, se não fosse assim, tinham que encontrar outro realizador", conta ao Ípsilon, num hotel de Londres. "Durante um mês não me disseram mais nada, depois ligaram a dizer que podia avançar".

E assim Hollywood entrou em Cabul - sem estrelas a americanas e a falar dari. Forster queria que os actores principais - que na primeira parte do filme são dois miúdos - fossem afegãos. Procuraram-nos nas comunidades afegãs em vários países, acabaram por os encontrar numa escola de Cabul. "Quando se trabalha com crianças é preciso encontrar nelas algo que elas já tenham e que projecte a personagem". Sentiu que Zekiria Ebrahimi (que no filme faz Amir criança), com o seu ar de nobreza triste, tinha isso. "Quando o conheci era tímido, mas depois soube mais sobre a vida dele. O pai foi morto por um míssil e depois dele nascer, a mãe, porque queria casar outra vez, abandonou-o. Havia um elemento trágico na sua vida, e isso sentia-se".

A seguir encontrou Ahmad Khan Mahmoodzada, pequenino, rosto redondo e sorridente, diferente de Ebrahimi, perfeito, pensou Forster, para o papel de Hassan, o rapaz da etnia hazara que vai ser traído pelo seu amigo pashtun Amir. "Ahmad era muito forte, era o sol, o brilho da vida, e percebia-se que ele seria capaz de qualquer coisa. Esperto e sábio, mas muito físico, enquanto Ebrahimi era mais frágil. Eram o oposto um do outro e seria uma boa combinação".

O que o realizador não imaginava a sua opção pelos dois rapazes afegãos (e um terceiro, que faz no filme o papel do filho de Hassan) iria desencadear uma polémica que obrigou a adiar a estreia do filme e a retirar as crianças do Afeganistão para as colocar num local seguro. Quando Forster e o actor Khalid Abdallah (que faz o papel de Amir adulto) falaram com o Ípsilon em Londres a polémica estava em todos os jornais e os dois tentavam desdramatizar a situação. Não aconteceu, de facto, nada aos dois rapazes, embora o estúdio tenha decidido levá-los temporariamente para outro país porque as famílias tinham manifestado receios de que pudesse haver represálias.

Choque cultural

No centro da polémica está a cena - central no livro, por isso incontornável - da violação de Hassan por um grupo de rapazes, enquanto o seu amigo Amir assiste, paralisado de medo. A culpa de ter traído o amigo, somada ao facto de este continuar sempre a sacrificar-se por ele, torna-se um peso para toda a vida, do qual Amir só se poderá libertar através de um acto de redenção. O momento marca a infância dos dois rapazes, e depois dele fecha-se a fase idílica do filme, que a partir daí segue Amir para o exílio na América, com o pai. Até ao dia em que recebe um telefonema que faz vir ao de cima toda a culpa e o leva de volta a Cabul, agora destruída por anos de guerra, dominada pelos taliban, e emudecida de medo.

Há, portanto, uma cena de violação. E isso, no Afeganistão, pode ser um problema - ou foi o que argumentaram as famílias dos dois jovens actores, explicando que as pessoas poderiam confundir a ficção com a realidade e pensar que Ahmad Khan Mahmoodzada tinha realmente sido violado. "Não houve ameaças contra os miúdos", repete Forster. "[A medida de retirar as crianças do país] foi uma precaução do estúdio, porque a situação no Afeganistão tem vindo a deteriorar-se. Na altura em que fiz o "casting" o país estava calmo e as pessoas estavam entusiasmadas com a ideia de que finamente iria haver um filme de Hollywood falado em dari".

Forster sabia que se estava a mover num terreno delicado e por isso rodeou-se de "um número louco de conselheiros" (havia tantos, que chegavam a contradizer-se e ficavam a discutir uns com os outros sobre qual era a tradição mais válida). Todos estes conselheiros, tal como muitos outros afegãos, "leram o livro, e nenhum expressou qualquer preocupação", afirma Forster. Por isso, avançou, tentando "fazer a cena da violação de forma impressionista".

Será a adaptação de "O Menino de Cabul" e a polémica que a rodeou um sintoma do choque cultural que acontece quando Hollywood chega ao Afeganistão? Forster - que já está a filmar o novo James Bond, "Quantum of Solace" - olha-nos desanimado. A última coisa que queria era que houvesse um choque cultural. E, de repente, todo o seu lado idealista vem ao de cima, e lança-se num discurso apaixonado sobre como as mudanças climáticas e os conflitos religiosos vão ser os problemas do século XXI e "se não compreendermos que somos irmãos, e se não formos compreensivos e soubermos perdoar, vamos destruir o planeta". No fim, suspira: "É isso que tento dizer com este filme. É ingénuo, mas é nisto que acredito".

Culpa e vergonha

Marc Forster é uma figura inesperada. A cabeça rapada e o blusão de cabedal contrastam com uma certa fragilidade e elegância de gestos. Nasceu em 1969 na Alemanha, mas cresceu em Davos, Suíça, e considera-se suíço. Fala pausadamente, em voz baixa, e por vezes parece atravessado pela mesma tristeza que reconheceu no actor que escolheu para fazer de Amir. É essa tristeza que, confessa, lhe interessa nas personagens que filma - interessou-lhe em "Depois do Ódio", em "À Procura da Terra do Nunca", e interessa-lhe no novo filme de Bond. Interessam-lhe filmes sobre pessoas "reprimidas emocionalmente", sobre o perdão, a culpa, a vergonha, e é possível que isso tenha a ver com a sua história pessoal.

O realizador que viu o primeiro filme quando tinha doze anos (não havia televisão em sua casa e os pais nunca o tinham levado ao cinema) soube aos 17 que o pai estava com um cancro. Durante os onze anos seguintes, a família viveu com a doença do pai, ao mesmo tempo que descobria que Wolfgang, o irmão mais velho de Marc, era esquizofrénico. O irmão acabou por se suicidar, o que abalou profundamente o pai, que morreu três meses depois.

Para além do fascínio por personagens reprimidas, Forster é também um entusiasta pelo lado humano (alguns diriam politicamente correcto) deste projecto e não se cansa de dizer que esta é "a primeira vez que se humaniza uma história afegã" e que se "dá uma voz e um rosto a pessoas que não têm tido nem um nem o outro nos últimos 30 anos". Cabul feita em ruínas, os taliban e as execuções públicas perante uma multidão eufórica estão lá, no filme e no livro. Mas também lá está outra Cabul, a dos anos 70, em que se ouve música ocidental, as mulheres usam mini-saias, há hippies nas ruas, e as crianças vão ao cinema ver "Os Sete Magníficos" e fazem concursos de lançamento de papagaios coloridos em cima dos telhados cobertos de neve.

Essa é a Cabul que o escritor Khaled Hosseini conheceu. Foi nesse Afeganistão, no ano de 1965, que ele nasceu, filho de um diplomata e de uma professora de Literatura, e foi em Cabul que viveu até aos 11 anos, quando o pai foi trabalhar para a embaixada do Afeganistão em França e a família mudou-se para Paris. O seu percurso tem pontos em comum com o da sua personagem, Amir: ambos imigraram para os EUA nos anos 80, pedindo aí asilo político (Hosseini foi directamente de Paris, e Amir fugiu à invasão soviética do Afeganistão), ambos estudaram Medicina, e ambos se tornaram escritores - Hosseini lançou "O Menino de Cabul" em 2003, o livro vendeu oito milhões de exemplares em todo o mundo, e em 2007 saiu o seu segundo romance, "A Thousand Splendid Suns", que será publicado em Portugal na próxima semana, pela Presença, com o título "Mil Sóis Resplandecentes").

Um livro que é "uma Bíblia"

Quando recebeu o livro, Forster percebeu que tinha nas mãos uma Bíblia. "Nunca tive tanta gente a vir ter comigo e a dizer "esse é o meu livro favorito, por favor não o transforme numa coisa de Hollywood"". Uma desconfiança natural, diz Khalid Abdallah. "Quando se vem daquela parte do mundo não se espera que Hollywood vá fazer um filme que nos represente". E tudo piora quando "só se ouve falar de uma cena de violação". Há ainda outra coisa que irrita o actor: "A ideia de que nós, no Ocidente, nunca acharíamos isto controverso, mas lá [no mundo muçulmano], eles são irracionais, ficam zangados e queimam coisas. Isso é outro estereótipo".

Hollywood chegou, portanto, sob suspeita e rodeada dos maiores cuidados, com uma história escrita por um afegão, actores afegãos (e outros, como o iraniano Homayoun Ershadi, o mesmo de "O Gosto da Cereja", de Abbas Kiarostami), e filmada no sítio mais parecido possível com o Afeganistão mas com melhores condições de produção: a região de Xinjiang, na China. O resultado? "Há muita diversidade no filme", afirma Khalid Abdallah. "Algumas vezes parece que estamos a ver um velho filme de Hollywood, outras parece um filme de Spielberg, outras vezes poderíamos estar a ver um filme iraniano. Sem dúvida que está mais próximo da forma de Hollywood ver as coisas. Mas não sei se o estilo de Hollywood tem o direito de ser chamado americano".

Seria um filme diferente se fosse realizado por um afegão? Marc Forster pára para pensar um momento. "A minha forma de contar a história é a ocidental, foi assim que cresci, é a minha linguagem". Mas não é apenas uma questão de linguagem. Esta é, afinal, uma história de culpa (um dos tais temas que obcecam Forster) e de redenção. E não é só pelo carácter sexual que a cena da violação incomoda. "No fundo", reconhece, "é uma metáfora para o que aconteceu com o Afeganistão: foi violado e o Ocidente ficou a ver, como Amir".

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