Across the Universe

Portanto, há um mocinho de Liverpool chamado Jude que zarpa para os EUA à procura do pai GI que engravidou a mãe quando estava em Inglaterra na II Guerra Mundial e, chegado lá, descobre a mulher da sua vida, que se chama Lucy e é irmã de um boémio de Greenwich Village que o apresenta à contra-cultura nova-iorquina. Tudo isto é contado, melhor, cantado por um elenco de (bons) actores em três dezenas de canções clássicas dos Beatles que servem, ao mesmo tempo, de base, inspiração e narrativa para "Across the Universe", musical construído de raíz para o cinema.

No papel, tudo isto é péssima ideia. Todos sabemos como têm sido raras as ocasiões em que o filme musical se tem conseguido reinventar a contento: mesmo contando o sucesso (mais comercial do que artístico) de "Chicago" (Rob Marshall, 2002), só a ousadia radical de Baz Luhrmann no extraordinário "Moulin Rouge" (2001), reinvenção simultaneamente radical e respeitosa do género, conseguiu provar que ainda fazia sentido tentar. Ainda por cima, "Across the Universe" chega às salas portuguesas de modo quase envergonhado e na mesma semana de um outro filme com música pop ao barulho (o notável "Control" de Anton Corbijn) - o que pode ser devido à performance modesta de bilheteira e críticas displicentes nos EUA, na sequência de uma guerra surda pelo controle do filme que opôs a realizadora Julie Taymor ao estúdio produtor. Ou ao desinteresse de uma distribuidora que tem mais em que pensar na mesma semana e já foi "escaldada" este ano com os resultados decepcionantes de "Dreamgirls" e desastrosos de "Hairspray".

Mas "Across the Universe" triunfa contra todos os obstáculos e, mesmo sendo um filme desequilibrado, é o digno sucessor de "Moulin Rouge" na tentativa de reinventar o cinema musical recorrendo a canções pop que fazem parte do "domínio público".

Dificilmente se encontrariam canções mais conhecidas (e importantes para o desenvolvimento da cultura, e da história da cultura, popular do século XX) do que as dos Beatles, e "Across the Universe" utiliza-as simultaneamente como símbolo e reflexo dos movimentos e das convulsões sociais da década de 1960. Poder-se-á dizer que a história do filme (e a própria escolha dos Beatles) é um sumário banal e redundante da ascensão e queda da contra-cultura juvenil, mas essa é apenas uma das superfícies: o que aqui temos é um musical hiperclássico, "boy meets girl, boy loses girl, boy gets girl back", que utiliza as canções dos Beatles para que esse classicismo se desdobre nas mesmas possibilidades que elas abriram a quem as ouviu no seu tempo, entre 1964 e 1970. Não é, certamente, por acaso que é precisamente nesse espaço de tempo (mesmo que nunca definido) que Julie Taymor escolheu que tudo se passasse.

Sabe quem viu a sua terrível e notável leitura de "Titus" de Shakespeare (1999) ou a sua surreal biografia de Frida Kahlo ("Frida", 2002) que Julie Taymor não está interessada em fazer "apenas" mais um filme, "apenas" mais uma biografia, "apenas" mais um musical.A encenadora e cineasta retira a sua adrenalina da corda-bamba, do risco, da entrega, da convicção, da intensidade que coloca em cada projecto - claro que isso por si só não é garantia de um resultado final satisfatório, mas é pelo menos garantia de que ninguém ficará indiferente a um objecto que recusa a complacência. Alguns dos mais extraordinários momentos de "Across the Universe" vêm dessa corda-bamba que nos desafia a deixar à entrada o preconceito e o cinismo.

Porque, mais do que qualquer outro género, o musical exige a suspensão da descrença e o retorno a uma inocência primitiva que só o deslumbramento permite. E Taymor não recua perante nada - nem sequer perante o recurso aos lugarescomuns do género - para nos procurar recolocar nesse estado de deslumbramento hoje cada vez mais difícil de recriar.

Não é um filme perfeito - ao contrário de Baz Luhrmann, que "combatia o fogo com o fogo", Julie Taymor prefere refugiar-se numa estrutura e numa construção formal mais clássica. Não evita algumas redundâncias, falha quando cita directamente o psicadelismo formal - são os momentos em que tudo se assemelha mais a um pastiche de época mais do que a uma reinvenção. Mas são os riscos que se correm para conseguir assinar um objecto como este, que não pede ao espectador mais do que ele próprio dá (e dá muito!), que se recusa terminantemente a ser o que os outros querem que ele seja e segue o seu próprio caminho.

Não temos a mínima dúvida que "Across the Universe" vai desaparecer das salas com a mesma discrição com que chegou. Às vezes, é esse o preço que se paga para se ganhar o culto. Mas talvez não seja má ideia começar século XX) do que as dos Beatles, e "Across the Universe" utiliza-as simultaneamente como símbolo e reflexo dos movimentos e das convulsões sociais da década de 1960. Poder-se-á dizer que a história do filme (e a própria escolha dos Beatles) é um sumário banal e redundante da ascensão e queda da contra-cultura juvenil, mas essa é apenas uma das superfícies: o que aqui temos é um musical hiperclássico, "boy meets girl, boy loses girl, boy gets girl back", que utiliza as canções dos Beatles para que esse classicismo se desdobre nas mesmas possibilidades que elas abriram a quem as ouviu no seu tempo, entre 1964 e 1970. Não é, certamente, por acaso que é precisamente nesse espaço de tempo (mesmo que nunca definido) que Julie Taymor escolheu que tudo se passasse.

Sabe quem viu a sua terrível e notável leitura de "Titus" de Shakespeare (1999) ou a sua surreal biografia de Frida Kahlo ("Frida", 2002) que Julie Taymor não está interessada em fazer "apenas" mais um filme, "apenas" mais uma biografia, "apenas" mais um musical. A encenadora e cineasta retira a sua adrenalina da corda-bamba, do risco, da entrega, da convicção, da intensidade que coloca em cada projecto - claro que isso por si só não é garantia de um resultado final satisfatório, mas é pelo menos garantia de que ninguém ficará indiferente a um objecto que recusa a complacência. Alguns dos mais extraordinários momentos de "Across the Universe" vêm dessa corda-bamba que nos desafia a deixar à entrada o preconceito e o cinismo. Porque, mais do que qualquer outro género, o musical exige a suspensão da descrença e o retorno a uma inocência primitiva que só o deslumbramento permite. E Taymor não recua perante nada - nem sequer perante o recurso aos lugarescomuns do género - para nos procurar recolocar nesse estado de deslumbramento hoje cada vez mais difícil de recriar.

Não é um filme perfeito - ao contrário de Baz Luhrmann, que "combatia o fogo com o fogo", Julie Taymor prefere refugiar-se numa estrutura e numa construção formal mais clássica. Não evita algumas redundâncias, falha quando cita directamente o psicadelismo formal - são os momentos em que tudo se assemelha mais a um pastiche de época mais do que a uma reinvenção. Mas são os riscos que se correm para conseguir assinar um objecto como este, que não pede ao espectador mais do que ele próprio dá (e dá muito!), que se recusa terminantemente a ser o que os outros querem que ele seja e segue o seu próprio caminho.

Não temos a mínima dúvida que "Across the Universe" vai desaparecer das salas com a mesma discrição com que chegou. Às vezes, é esse o preço que se paga para se ganhar o culto. Mas talvez não seja má ideia começar já a descobri-lo.

Sugerir correcção
Comentar