A desencarnação de Ian Curtis

De pouco convencionais biografias filmadas ("biopics") de "rock stars" vamos estando servidos, do mais longínquo "Velvet Goldmine", de Todd Haynes (talvez imaginando David Bowie) ao mais próximo "Last Days", de Gus Van Sant (talvez imaginando os últimos dias de Kurt Cobain). "Talvez" porque na vontade determinada de não seguir as regras do jogo habitual - e de fazer a "antibiografia" - alguns desses exercícios são aventuras na abstracção que arriscam não se materializar (o filme de Van Sant) ou então são um segredo para iniciados desvendarem: o caso do recente, e ainda não estreado, "I''m not There", de Todd Haynes (ele outra vez!), em que seis actores/personagens são postos no encalço de um cantautor, Bob Dylan, e o espectador desprevenido (isto é, menos familiarizado com a iconografia e seus episódios) é posto a correr, ofegante, a ver se apanha o filme - não apanha.

Em relação a "Control", a também nada convencional biografia de Ian Curtis, dos Joy Division, filmada por Anton Corbijn a partir de "Touching from a Distance" (o livro que escreveu a viúva de Ian, Deborah Curtis), se calhar quanto menos se souber do mito, melhor, mais hipóteses há de se gostar do filme. Não porque Corbijn desmitifique, na verdade. Mas porque o realizador escolhe um caminho - é o essencial em "Control": a passagem... -, que é um percurso pelas estações da vida material de "small people" para, assim, voltar a instalar o mito "bigger than life". (Como se num primeiro momento retirasse o poster de Curtis das paredes, para o volta a colocar lá, nas alturas, porque é nas alturas que "Control" termina).

Esta é a história de um grupo de rapazes de um deprimido subúrbio da deprimida Manchester. Esta é a história de um rapaz da aldeia assustado com a sua epilepsia, assustado com o peso da fama que vê chegar, com a vida familiar que não quer, com o adultério a que não resiste. (É músico, podia ser carpinteiro). Tudo isto num preto e branco que cria um halo à volta das personagens, assim se sublinhando a sua angustiante distância e intocabilidade - tocá-las só com a distância. Isso é uma forma de fidelidade a esse "touching from a distance" do título do livro que uma mulher escreveu sobre o seu marido, Deborah sobre Ian.

"Control" mantêm-se, assim, fiel à impossibilidade de galgar a distância que separa duas pessoas, fiel à impossibilidade de explicar o que se passa dentro de um corpo - porque, finalmente, só se pode mostrar o que ele tem de atravessar.

Isto, dito assim, parece saído de um filme de Robert Bresson e não de um filme de um realizador de videoclips. E dito assim é também algo que surpreenderá o próprio Corbijn. Em entrevista que publicamos nestas páginas, o realizador admite não conhecer especialmente o cinema - também se pode querer ver em "Control" algo que faz uma síntese daquele claustrofóbico cinema britânico dos anos 60/70 feito pelos "angry young" cineastas desse tempo.

É bonito que Corbijn recuse a cinefilia: este filme vem, então, de um lugar mais solitário, virginal. É essa a intensidade da sua luz. Mas é um filme que vem, claro, da obra (de fotógrafo, de realizador de videoclips) de Corbijn, onde (vejamse as pantomimas cúmplices com os Echo & the Bunnymen; ou o que Corbjin filmou para Nirvana e Depeche Mode) o mundo tem a escala de uma miniatura onde se coreografa um percurso - não devemos ter medo da palavra - crístico. Ei-lo, então, Sam Riley, encarnando Ian Curtis. Não há muitas palavras, que possam escapar ao lugar-comum, para descrever, e estar altura, da emoção de o ver desconjuntar-se em "Transmission" (a primeira exposição da electrizante presença em palco de Curtis), invocando/ exorcizando a sua epilepsia ("She''s lost control"), as ruínas majestosas do casamento ("Love will Tear us Apart"), o cerco final ("Isolation") e a libertação (não devemos ter medo da palavra, também, isto é uma ascese), com "Atmosphere".

A câmara sobe para acompanhar o fumo do forno crematório que espalha Ian Curtis e é o fim. Ei-la, a desencarnação de Ian Curtis.

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