"Crash" de 1987: “Os investidores nem sabiam o que as empresas produziam”

A euforia do mercado bolsista português surge devido à confiança que se foi criando, à existência de governos estáveis, à entrada de Portugal na União Europeia em 1986 e à política de abertura do capital das empresas, não só das cotadas como outras.

Foi a época das OPV (Operações Públicas de Venda). Os bancos emprestavam dinheiro quase sem garantias, daí o excesso de liquidez existente ter sido canalizado para o mercado de acções. O que deu origem a preços de OPV completamente distanciados da realidade. As cotações não tinham nada a ver com a situação real das empresas. Fomos arrastados não só pelos acontecimentos externos - lá fora também se viviam tempos eufóricos - mas também pela situação interna.

A bolsa nessa altura era uma moda. Alguém ouvia dizer que o vizinho estava farto de ganhar dinheiro e faziam-se filas enormes para comprar acções quando havia aumentos de capital. O dinheiro aparecia facilmente porque os bancos o emprestavam. Também tinham excesso de liquidez e a forma mais fácil de ganhar era emprestar, não para investimento que produzisse riqueza mas no que gerava lucro fácil. E as pessoas iam para a bolsa. Comprar e vender na bolsa passou a ser popular. De repente, apareceu gente que não estava bem dentro do que era o mercado de capitais, que pensava que era só ganhar. Quando se deu a derrocada foram apanhados, como seria previsível.

A determinada altura, dizer às pessoas para não comprarem porque as cotações não correspondiam à realidade, não resultava. Cheguei a ter clientes e amigos que iam ter comigo para comprar acções e a quem eu dizia: ‘O melhor é estares quieto, o melhor é não comprares, já que está tudo inflacionado’. Mas não, saíam do meu escritório e iam para o escritório de um colega comprar.

Se a memória não me falha, uma das primeiras empresas a querer fazer dispersão das acções queria fazê-lo através de um aumento de capital a três contos e quinhentos. Havendo dúvidas sobre o preço, a empresa foi aconselhada pela comissão da bolsa a fazer uma OPV, prática usual na altura noutros mercados. Era preciso arranjar um sindicato bancário que tomasse firme a operação, que foi de cinco contos. Na OPV, o preço final foi significativamente superior, salvo erro de doze contos e quinhentos. E a primeira cotação na bolsa foi acima dos 20 contos, um valor impensável.

Às tantas todos os accionistas maioritários das empresas queriam fazer a sua OPV e faziam-no, desde que arranjassem um sindicato bancário que lhe garantisse a operação –as exigências não eram muito grandes. Empresas pouco conhecidas apareciam a fazer as suas OPV. Para as instituições financeiras era um bom negócio porque era uma oportunidade de reaverem dinheiros que a empresa, ou os accionistas da empresa, lhe deviam. Houve pouco escrúpulo nessas situações.

É evidente que, a partir de uma determinada altura, as cotações que as acções atingiram começaram a preocupar muita gente. Lembro-me bem de a RTP ir ao meu escritório para a eu comentar a célebre frase do ‘gato por lebre’. A tal frase do então primeiro-ministro [Cavaco Silva] queria significar que as pessoas deviam ter cuidado, porque não era só comprar gato por lebre, era também [querer dizer] que se estava a comprar acções que não tinham nada a ver com o valor real. Comprar acções da Rádio Marconi ou de outra empresa sólida não significava que se estivesse a comprar gato, estava-se no sentido em que as cotações não correspondiam ao seu valor. Já se estava a viver fora da realidade. E não era só cá, lá fora também acho que era assim, e aconteceu o que aconteceu.

O “crash” de Wall Street acontece no dia 19 de Outubro e no dia seguinte – nós não trabalhávamos à segunda-feira - dá-se a derrocada em Lisboa. As cotações começam a cair abruptamente porque os compradores desaparecem e as acções começam a atingir valores mais realistas, outras até abaixo do seu valor. É sempre assim. Na véspera toda a gente quer comprar porque as cotações não param de subir, nesse dia toda a gente começa a ficar com a certeza de que vão cair. Não vi grandes pânicos. Pânico devem ter sentido as pessoas que começaram a ver as acções a desvalorizar, sobretudo pessoas endividadas, porque não eram só pessoas com dinheiro que investiam, também pessoas que não o tinham. Umas hipotecaram as casas, outras hipotecaram outros bens para arranjarem dinheiro para investir. Aos que tinham conhecimentos nos bancos às vezes nem sequer garantias lhes eram pedidas, bastava a garantia das acções.

A determinada altura, ainda antes da derrocada, os bancos começam a emprestar cada vez menos porque também se apercebem dos riscos. Mesmo que não houvesse “crash” lá fora, aqui tinha que haver. Havia frequentes chamadas de atenção. Lembro-me de uma frase célebre, que apareceu nos jornais na altura: ‘As árvores não chegam ao céu’. Tudo para chamar a atenção de que um dia ia haver o reverso da medalha.

Chegou-se a cotar acções de empresas que os investidores nem sabiam o que é elas faziam, o que produziam. O sistema de então teve alguma responsabilidade, mas teve-se o cuidado de definir algumas regras. A partir do momento em que as regras eram cumpridas, e uma delas era haver um sindicato bancário que tomasse firme a operação, nós na bolsa não podíamos fazer nada.

Chamava-se a atenção, mas as pessoas não queriam saber. Os corretores não tinham função de aconselhamento, não podiam influenciar o cliente. Se não comprassem porque se dizia para não comprarem, oito dias depois as acções continuavam a subir e o cliente tinha perdido uma boa oportunidade de negócio.

A seguir foi a travessia do deserto para toda a gente, sobretudo para os investidores. Houve quem ficasse em muito maus lençóis porque os seus activos, de cem mil contos, ou dez mil contos, ficaram praticamente reduzidos a zero. Acções que se transaccionavam a 20 contos, ou a 15 contos, de repente, passaram a transaccionar-se a centenas de escudos. E outras deixaram de ter cotação. Pessoalmente não conheço investidores que tivessem tido problemas porque grande parte dos meus clientes eram bancos. Trabalhava principalmente com instituições. Não sabia quem é que estava por trás das ordens dos bancos. Mas sei, e leu-se nessa altura nos jornais, de casos bem graves.

Os corretores não tinham por hábito investir directamente, nem tempo sequer para seleccionar investimento. Mas todos passaram um mau bocado nessa altura – tiveram que suportar prejuízos, uns mais elevados outros menos. O que acontecia muitas vezes era que clientes que tinham dado ordens de compra não liquidavam o seu débito e os corretores tinham que os substituir, ficando com as acções. E se as cotações começavam a cair, esta prática traduzia-se em prejuízos. Por razões de conflito de interesses os corretores não podiam investir. A lição que se tirou, e é uma lição que depois se esquece, é de que a movimentos de subida especulativa seguem-se sempre movimentos de descida abrupta. As acções têm um valor, há sempre um valor especulativo que se pode acrescentar, mas a partir daí há que ter cuidado.

(depoimento recolhido por João Manuel Rocha)
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